01 março 2006

Perinhas e borboletas


Tenho um quintal no meio da vila. No meio da vila tenho um quintal. No meio do quintal tenho uma pereira que dá umas perinhas que são uma gracinha. Não uso químicos. As larvas tomam conta da maior parte das perinhas. Pouco me importo. As que escapam ao bicho não são más, embora pequenas. É que eu tenho outro ganho. Todas as primaveras andam de volta da minha pereira umas borboletas multicolores que nunca vi em qualquer outra parte. Um amigo meu, já há muito tempo, ensinou-me a capturá-las sem as espantar, a prepará-las e exportá-las para o norte da Europa e Estados Unidos. As encomendas têm crescido de ano para ano, o que me fez pensar, já lá vão uns meses, que eu poderia dar uma dimensão industrial ao meu negócio. Sempre pressenti que entre a singular colónia de borboletas e a pereira haveria qualquer insondável relação. E se eu, sob conselho de um agrónomo, a partir da única pereira no meio do quintal, fizesse crescer mais umas vinte ou trinta daquelas arvorezinhas? Talvez pudesse fazer crescer a colónia de borboletas e exportá-las em quantidades industriais, talvez desse trabalho a meia dúzia de colaboradores, comprasse depois um terreno maior em local adequado, transplantasse as árvores para lá...Além disso, poderia promover as minhas perinhas a peras ecológicas, arranjar um certificado verde, pô-las bichadas e tocadas no mercado, todas se venderiam, não têm químicos, são belas a valer, toca a comê-las.
Num dia destes recebi uma carta da Câmara. O sr. Presidente queria falar comigo. Achei natural o pedido do edil. Chegado o dia e hora, lá subi os Paços do Concelho. Pediram-me que aguardasse. Esperei quase uma hora, o que muito estranhei. Mas pronto, um presidente de câmara é sempre um homem muito ocupado, há sempre imprevistos. A dada altura, a menina disse-me que eu podia entrar. O sr. Presidente estava sozinho. Quando entrei não levantou logo os olhos para mim. Enfim, lá disse que me sentasse. Sentei-me numa cadeira à frente dele. Entre nós a secretária cheia de papéis. Quase só o via do pescoço para cima. O sr. Presidente quis saber se o negócio das borboletas ia bem. Respondi que sim. As frases dele eram intermitentes. Mantinha um ar sério, meio intimidativo. Pareceu-me que desenhava enquanto atirava para cima de mim as palavras cuidadosamente escolhidas. De um momento para o outro disse-me que o meu quintal tinha interesse para a comunidade. Seria um quintal ecológico para edificação dos jovens. A Câmara queria chegar a um acordo comigo. Eu que pensasse e dissesse qualquer coisa. Respondi que o meu quintal não estava à venda. O sr. Presidente retorquiu logo que poderia expropriá-lo, o que seria bem pior para mim. Levantei-me sem perder a dignidade, disse-lhe boa tarde, desci a escadaria devagar, vencido, consciente de que a inveja ecológica tinha posto um termo aos meus sonhos de pequeno empresário.
Tinha um quintal no meio da vila. No meio da vila tinha um quintal. No meio do quintal tinha uma pereira...

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