29 março 2006

Um conto para os jovens

Pelo lugar e barulho que vinha de dentro, aquele barracão parecia o que lhe tinham indicado. Um medo cada vez maior ia-se apossando dele à medida que se aproximava do antro. A porta estava só encostada. De dentro era a música. Decidiu-se a entrar confiado no plano. Uma dúzia de caras, mais rapazes que raparigas, voltou-se ao mesmo tempo como se obedecesse a um comando. Talvez julgassem que fosse um polícia porque desligaram o gravador. Levantou-se a voz de uma moça para dizer que aquele rapaz tinha sido o seu primeiro namorado. Todos riram aliviados e convidaram o intruso a sentar-se. Sobre uma mesa comprida havia peças várias de automóveis, molhos de chaves, ferramentas de todos os tipos. Um dos rapazes encheu um copo e estendeu-lho. Ele ia aceitar, mas levou com a cerveja na cara. As gargalhadas soaram como balas de metralhadora. Ele não reagiu. Enquanto limpava a cara com um lenço que tinha tirado da algibeira, empurraram-no da cadeira e ele caiu no chão aninhado como um feto. As gargalhadas levantavam-se como cobras furibundas acossadas pelo fogo. Ouviu-se um grito, «Parem!». Era a voz da mesma moça. Todos olharam maquinalmente para ela como se não a reconhecessem. Perguntaram-lhe ameaçadoramente que grito tinha sido aquele. Ela respondeu aos amigos que também faziam pouco dela. Disseram-lhe que não estavam a perceber. «Já disse, ele foi o meu primeiro namorado! Ele é bombeiro!» Fez-se um silêncio estúpido entre os rapazes. Ele sentia aquela luz amarelenta como mó sobre si. Fixou Cláudia Sofia e começou a rememorar um poema antigo, «Cláudia minha/Eu te adoro/Tão menina/ Por ti choro/Teu olhar/Sempre atento/Vou lembrar/Vezes cento». Rebentaram de novo as gargalhadas, mas um matulão berrou a rir-se, «Estou a topar, deixem ouvir o poeta!» Todos se calaram, ficaram só os sorrisos de escárnio. O bombeiro já ia a meio, «...Teu sorriso/Fio de luz/ Traz o siso/Que seduz».
Claudia Sofia não tinha tido aproveitamento no décimo ano, já lá iam dois anos. A melhor nota tinha sido a Português, depois uma ou duas positivas baixas e negativas ao resto. No final de cada período era sempre o mesmo. O Conselho de Turma olhava embaraçado para o colega de Português e pedia-lhe que desvendasse o segredo. O professor dizia não saber, que era os resultados que tinha. Os outros encolhiam os ombros, vinha uma graçola para descongestionar e Cláudia Sofia ficava para trás. Para trás já tinha ficado o pai que morrera num desastre de mota a caminho do trabalho e deixava por criar três filhas. A mãe trabalhava doze horas por dia numa pequena fábrica de carnes para fazer face às despesas. Há muito que não podia controlar devidamente a vida escolar das miúdas. Cláudia Sofia, a mais velha, reprovada no décimo ano de Humanidades, não quis matricular-se no ano lectivo seguinte com o pretexto de ajudar a família. A ajuda que deu foi aparecer com um rapaz que metia medo à mãe e irmãs. Era alto, desconjuntado, sempre a rir-se com o riso da estupidez, dentes grandes todos à mostra, a falar aos roncos. Um dia Cláudia Sofia desapareceu de casa. Tinha deixado apenas um bilhete pedindo que não se ralassem com ela. A mãe calculava com quem a filha estava, só não sabia onde.

Um vizinho que percorria o distrito a vender roupas trouxe a notícia que vira a Cláudia Sofia num lugarejo para lá do Pinhal Novo, não longe da estrada que segue para Setúbal. Depois, com o passar dos dias, vinham informações cada vez mais precisas sobre a Claudinha como lhe chamava o ti Rafael das roupas. Até que a mãe foi lá, encontrou a filha, pediu-lhe aflita que voltasse para casa, mas em vão. Cláudia Sofia só repetia, «Mãe, vá-se embora, eu cá me arranjo!»
Quando Cláudia Sofia andava no décimo ano, a mãe só lhe ouvia falar em casa no namorado, «Mãe, até faz poemas e tudo!» Era o jovem bombeiro, o Victor Escada. Por vezes aborrecia-se com a filha porque todas as conversas iam dar ao Escada e gritava-lhe, «Tem dó, não sou bigorna!» Mas agora ela tinha uma ideia. Talvez este rapaz desse a volta à cabeça da filha. Nos papéis da Cláudia Sofia lá estavam os poemas do Escada escritos à máquina em folhas brancas. Telefonou-lhe e disse-lhe, «Tenho a certeza que a podes fazer mudar de ideias!» Victor Escada imaginou logo os riscos que poderia correr, mas disse, «Está bem, eu vou!».
Lá foi, lá está, «És miragem/Meu amor/ Qual imagem/Sobre andor». Cláudia Sofia fitava o antigo namorado num silêncio que já tinha perdido toda a dureza. Agora era a luta contra a torrente das lágrimas e as lembranças de um tempo válido. Os outros fitavam ora a companheira, ora o bombeiro à espera de um desfecho. Cláudia Sofia, serenando o rosto, transfigurada a voz, disse, «Vai-te embora, Escada!». Um daquela maralha ironizou, «Tinha que ser bombeiro!». Victor Escada levantou-se, disse a todos, «Boa-noite!» e saiu a saber que o milagre se tinha operado. No dia seguinte, fazia dezassete anos que Cláudia Sofia tinha sido dada à luz, apareceu à mãe para ajudar no que pudesse e recomeçar uma nova vida.

Sem comentários: