03 março 2006
D. Mariana Gonçalves perdoar-nos-á?
Mão amiga fez-me chegar um documento respeitante à Fundação João Gonçalves Júnior, apresentado por Jorge Giro na última sessão da Assembleia Municipal, realizada no passado dia 23 de Fevereiro.
O autor é tesoureiro da instituição e eleito da CDU no órgão deliberativo do Município de Alcochete, entidade administrativa que tutela há anos essa fundação.
Pouco existe no documento que seja novidade para mim, porque num meio pequeno raros segredos o são durante muito tempo. Não o reproduzo porque o jornal local já a ele se referiu (ver edição de 1 de Março) e por ser demasiado extenso para um mero diário ou bloco de notas electrónico.
Há mais quem tenha obrigações legais e políticas para o transcrever. E meios adequados também, embora o sítio na Internet se limite a anunciar passeios, palestras, concertos, reuniões e corridas de bicicletas. O resto é matéria reservada a mentes iluminadas.
Quatro meses volvidos sobre alterações substanciais nas cadeiras do poder, parece-me evidente que no Município de Alcochete ainda só mudaram as moscas.
As mentes brilhantes continuam a discutir e a decidir assuntos públicos em círculo restrito, ignorando que representam o povo e este pode não ter tempo, vontade ou paciência para acompanhar sessões políticas.
Em síntese, as contas apresentadas acerca da fundação pouco divergem da apreciação feita pelos eleitos da CDU sobre as da câmara. Os argumentos são típicos dos vencedores, porque nunca lhes basta a derrota eleitoral dos oponentes. É preciso destruí-los.
Sobre o estado do Município de Alcochete e do muito (demasiado até) que dele depende, quem lê os meus escritos sabe que considero haver responsabilidades repartidas entre mais de três dezenas de eleitos que, no mandato anterior e em representação de todos nós, exerceram funções autárquicas. Até prova em contrário não excluo ninguém. E eles andam por aí, embora calados.
Quanto à Fundação João Gonçalves Júnior, penso que a solução dos seus problemas depende sobretudo da vontade dos alcochetanos.
Duvido que seja vocação do município geri-la, menos ainda com a autonomia de que desfruta. O seu poder é tão ilimitado que, mudando os eleitos locais, ocorrem reflexos imediatos na gestão e nos quadros da fundação. O porquê disso não entendo, provavelmente por deficiência minha.
É para mim inexplicável que, contrariando testamento escrito da sua instituidora, mais de meio século após ter sido criada a Fundação João Gonçalves Júnior seja mera organização comercial vocacionada para o ensino e a guarda dos filhos pequenos de quem tenha dinheiro para pagar a mensalidade exigida.
Menos compreendo que numa época difícil como a actual, em que tanta gente sobrevive em condições deploráveis, ninguém repare que os fins expressos da fundação eram "a distribuição de uma sopa aos pobres da freguesia de São João Baptista, de Alcochete, fundação que tomará o nome de meu pai João Gonçalves Júnior e será administrada pelo Padre Crispim António dos Santos [pároco da freguesia], pelo dr. José Grilo Evangelista, médico em Alcochete, e pelo dr. José Maria Gonçalves Guerra, médico no Montijo" – tal como deixou lavrado, em testamento de 5 de Dezembro de 1951, D. Mariana Gonçalves Dias de Sousa Rodrigues, cujo nome de solteira era Mariana Augusta da Cruz Gonçalves.
Em seu leito de morte, em circunstâncias dramáticas e na presença de duas testemunhas, essa senhora resolveu ditar testamento e disposição de sua última vontade perante o notário dr. Fernando Tavares de Carvalho, que tinha a seu cargo o 9.° Cartório Notarial de Lisboa.
Deixou bem expresso no testamento que a sede da fundação "será em Alcochete e que, dado o caso de falecimento de qualquer dos nomeados administradores, será ele substituído pelo que os sobreviventes nomearem". Determinaria ainda que, "se por qualquer motivo, a fundação se extinguir, os bens que a tiverem representado serão deferidos a favor de todos os sobrinhos, filhos de todas as suas irmãs, falecidas ou não falecidas, entre as quais deveria ser incluída, nas mesmas condições, sua prima Ilda Gonçalves de Oliveira".
Em 7 de Janeiro de 1952 – menos de um mês decorrido após a elaboração do testamento – verifica-se o óbito da doadora, aos 63 anos de idade. É instaurado o processo de Inventário Orfanológico obrigatório, que viria a ser profusamente recheado de incidentes processuais e de recursos para os tribunais superiores.
A fundação seria legalmente criada em 1953 mas o litígio judicial arrastar-se-á por onze longos anos, sem que os administradores nomeados em testamento conseguissem pôr a funcionar a fundação e a sua sopa dos pobres.
Em 30 de Maio de 1962, o ministro da Saúde e Assistência emite um despacho nomeando uma Comissão Administrativa para a fundação, constituída por dr. Francisco Elmano da Cruz Alves, advogado; dr. José Grilo Evangelista, médico em Alcochete; e António Antunes, provedor da Santa Casa da Misericórdia de Alcochete, tendo como objectivos prioritários terminar o processo judicial, entrar na posse dos bens da herança e pôr a instituição em funcionamento efectivo.
Em 15 de Agosto de 1962 é aprovado o primeiro orçamento da Fundação João Gonçalves Júnior e, em 15 de Janeiro seguinte, será arrendado o prédio então pertencente a Aires Salvado de Carvalho, sito na Rua Dr. Ciprião de Figueiredo (ex -D. Manuel I), n.°s 24 a 28 – hoje edifício de propriedade municipal – no qual se instalam provisoriamente a sopa dos pobres e a secretaria da instituição. Começava, finalmente, a cumprir-se a última vontade da benemérita doadora.
Em Abril 1963 iniciam-se as obras de adaptação do edifício arrendado e procede-se ao seu apetrechamento. Em 15 de Novembro do mesmo ano saldam-se as contas com o dr. Carlos Zeferino Pinto Coelho, advogado que representou a fundação em juízo durante doze anos.
Em Dezembro de 1963 obtém-se a colaboração da Congregação das Irmãs Franciscanas de Calais, que virão dirigir a sopa dos pobres e o futuro patronato das crianças.
Então a Comissão Administrativa resolve, dentro de uma interpretação extensiva dos fins testamentários definidos para a fundação, que a assistência a prestar aos pobres não seria restrita ao plano alimentar – onde, aliás, as carências em Alcochete vinham diminuindo com o surto de industrialização. As carências educacionais eram tanto ou mais importantes que o pão para a boca e a criação de um jardim infantil preencheria essa lacuna, visto que muitas mães trabalhadoras não tinham a quem confiar os filhos durante o dia.
Em 7 de Janeiro de 1964 é inaugurada a sede provisória da sopa dos pobres. Dezasseis dias depois é proposta a alteração dos estatutos, para contemplar o jardim infantil e aumentar de três para cinco o número de administradores da fundação.
A 20 de Março seguinte delibera-se adquirir à família Barreto, herdeira de D. Mariana Rosa Adivinha da Costa, o prédio sito no Largo de São João, n.ºs 23 a 27, por 330 contos, a fim de aí erguer a futura sede (o edifício hoje existente). Em 15 de Abril seguinte chega a Alcochete a comunidade religiosa, composta por quatro irmãs e superiora, que se dedicarão inteiramente à sua missão.
Em Outubro desse mesmo ano terminaria o primeiro arrendamento das marinhas de sal, celebrado em 1962 – as marinhas do Brito, junto à Praia dos Moinhos, foram integradas no terço do testamento atribuído à fundação – e, em Março do ano seguinte, realizar-se-ia a primeira ida à praça do arrendamento, não aparecendo candidatos. A segunda praça ficará igualmente deserta.
Perante este cenário, em 24 de Abril de 1965 resolve-se empreender a exploração directa das salinas, contratando um encarregado para dirigir a exploração. Ainda hoje essas marinhas estão a cargo da fundação, embora com significativo apoio financeiro do município visto serem deficitárias.
Ao tempo o jardim infantil funcionava com 50 crianças e a escritura de aquisição do prédio original à família Barreto foi outorgada em 17 de Novembro de 1965, sendo doado pelos vendedores um donativo de 20 contos.
Em 2 de Janeiro de 1966 é entregue ao arquitecto Lopes Galvão a elaboração do projecto do actual edifício sede da fundação, prevendo três frentes que continuam a existir.
A 9 de Outubro de 1966, o dr. Elmano Alves propõe a sua substituição na presidência da fundação pelo Padre José Gonçalves dos Santos, pároco de Alcochete, que se concretizaria apenas em Julho de 1968. Em 15 de Janeiro de 1969, o então Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, dá a benção à primeira pedra da sede e as obras iniciam-se de imediato.
Entretanto, surge a oportunidade de instalar, no rés-do-chão do Largo de São João, a agência do Banco Pinto de Magalhães, hoje a dependência do Millennium BCP. Em Setembro de 1972 conclui-se a negociação do arrendamento com o Banco Pinto de Magalhães, mediante a renda mensal de 6.000$00 (importância que na época correspondia ao valor dos salários do pessoal da fundação), além da entrega de mais 300.000$00 e de um donativo de 100.000$00 para o jardim infantil.
Em Abril de 1974 ocorre a Revolução dos Cravos e, em Junho do ano seguinte, o dr. Elmano Alves renuncia definitivamente à administração da fundação. Pouco tempo depois seria forçado a refugiar-se no Brasil, donde regressa no início da década de 80. Felizmente continua entre nós e mantém contactos regulares e frequentes com Alcochete, embora esteja radicado em Canha (Montijo), onde possui uma propriedade agrícola.
Há meses contou-me que, no período 1974/1975, o então comandante Fuzeta da Ponte – hoje almirante na reserva, que na época desempenhava as funções de Governador Civil designado pela Junta de Salvação Nacional – pressionou o saneamento da administração da Fundação João Gonçalves Júnior. Teve apoios locais para o efeito e os mais velhos conhecem bem essa história.
Foi cumprido o desejo dos "revolucionários" e, ao arrepio da última vontade de D. Mariana Gonçalves, mais de 30 anos volvidos a fundação, construída com dinheiro por ela legado aos pobres, continua a ser coutada de quem se senta nas cadeiras do município.
Porquê? Onde quer que esteja, D. Mariana Gonçalves perdoará isto aos alcochetanos?
Desculpem a extensão do texto mas é meu dever repetir, até à exaustão se necessário, algo que me deixa arrepiado sempre que se fala nos problemas da Fundação João Gonçalves Júnior.
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3 comentários:
Sr Bastos, parabéns pelo seu texto excepcional.
Ponho-me ao seu lado quanto à indignação que as suas palavras expressam.
Elucidativo...
Pelo que me é dado conhecer, está conforme os factos reais.Parabéns
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