04 janeiro 2006

Questão política ou factos que a justiça deve julgar? (2)


Os números falam por si e não os considero surpreendentes. Há autarquias mais pequenas, com dívidas muito superiores.
Dias antes das eleições de 9 de Outubro, o actual presidente da câmara e eu próprio escutámos o relato de um funcionário municipal descrevendo factos e verbas que prenunciavam gestão desregrada. Se houve ou não também gestão danosa, só à justiça cabe ajuizar e punir, sendo caso disso.
Graves são, por agora, as consequências para inúmeras pequenas empresas envolvidas nesta teia de impunidade e perversidade, financiadoras presumivelmente forçadas das ambições e da cegueira de um poder local podre e descontrolado. Alguns ainda se espantam quando a maioria das obras públicas custa o dobro ou o triplo do valor-base inicialmente anunciado...
Estranho que tantos cidadãos paguem alegremente este regabofe e raros ousem questionar chicos espertos armados em xerifes autárquicos.
Mais estranho que, com tantos maus exemplos por esse país fora, as deliberações que envolvam verbas avultadas não tenham de ser votadas e justificadas por maiorias de 2/3 ou mesmo 4/5, nas câmaras e assembleias municipais.
A verdade é que um presidente de câmara têm mais poder que o Presidente da República e, não raras vezes, vereadores e deputados municipais parecem marionetas ou patetas.
Não concebo que continue a permitir-se a alguns autarcas esbanjar em "elefantes" multicoloridos, enquanto adiam para as calendas obras prioritárias em aglomerados populacionais mal conhecidos porque periféricos, onde não há condições de vida dignas. A 30kms do Terreiro do Paço, no séc. XXI, há alcochetanos que habitam em locais semelhantes a pocilgas!
Passemos às responsabilidades políticas que, perante algumas afirmações graves do actual presidente da câmara, os eleitores devem exigir a todos os eleitos no mandato anterior.
Nenhum dos 12 pontos resumidos na primeira parte deste texto pode ficar sem esclarecimento cabal de todos os cidadãos eleitos no mandato de 2002/2005. Repito: TODOS. São nada menos de 34, entre Câmara Municipal (7) e Assembleia Municipal (27).
Muitos foram reeleitos para novo mandato e outros andam por aí. Não consta haver alguém foragido ou em parte incerta. Há quem aspire a novos cargos no futuro e quem os tenha conseguido no presente. O próprio presidente da câmara em exercício era deputado municipal.
Até prova em contrário, todos os eleitos são solidários com o estado das finanças municipais. Terão conhecido, votado ou ignorado decisões relevantes e, quem não votou contra nem denunciou deliberações ilegítimas ou irregulares, tacitamente aceitou-as.
Note-se que o primeiro ponto da ordem de trabalhos de qualquer reunião ordinária da Assembleia Municipal é a apreciação de um relatório das actividades e da situação financeira do município, apresentado pelo presidente da câmara. Confesso que, no período 2003/2004, li um ou dois desses documentos e pasmei. Não me recordo de ter escutado qualquer deputado municipal a invocar a lei de competências das autarquias e a protestar pela exiguidade da informação financeira.
Câmara e assembleia são órgãos colegiais, tendo o primeiro papel executivo e o segundo a função de acompanhar e fiscalizar as decisões daquela. Não há disposição legal que obrigue a assembleia a vergar-se a decisões da câmara, mesmo que as maiorias sejam comuns.
Desculpem a insistência mas faz sentido repetir e adaptar à oposição uma frase usada anteriormente para o poder: a credibilidade dos eleitos, a dignidade das instituições e a participação dos cidadãos nos assuntos locais não se preservam nem potenciam com omissões, desatenções e irreflexões.
Se algum dos anteriores eleitos conhecia a real situação financeira do município (bem como outros factos que, provavelmente, se virão ainda a saber no futuro), importa esclarecer por que não a denunciou em tempo. Se desconhecia, convém explicar as causas e contribuir para que se tomem as medidas convenientes.
Se alguém conhecia mas não denunciou o que é agora do domínio público, a bem da democracia faça o favor de tirar as devidas ilações políticas: renuncie aos cargos, peça desculpa e nunca mais se candidate às autarquias.
Importa ainda apurar, eventualmente, que disposição legal permite aos líderes de maiorias políticas sonegar informação a correligionários e à oposição. Alguns eleitos que consultei a propósito deste assunto alegam desconhecer o que veio a público. Depreendo não lhes ter sido fornecida informação suficiente para votar em consciência e exercer cabalmente o poder de representação dos cidadãos, o que me parece particularmente grave.
Entre duas hipóteses parece-me plausível somente uma: ou todos os eleitos foram iludidos e está aberto o caminho para levar os responsáveis a tribunal, ou o poder local é uma farsa. Recuso-me a encarar a segunda hipótese.
Parece-me indiscutível que o julgamento político do anterior executivo, feito pelos cidadãos a 9 de Outubro, foi justo e amplamente justificado. Será que basta para ficarmos descansados?
Finalmente, chamo a atenção para o ponto 11 da primeira parte deste texto. Segundo o novo presidente da câmara, o município carece, urgentemente, "de uma receita extraordinária", podendo o novo executivo vir a adoptar medidas que considera "não serem dignificantes para a autarquia, mas que podem vir a mostrar-se necessárias".
Talvez seja melhor explicar-nos o assunto como se fôssemos muito burros!

5 comentários:

Unknown disse...

Os dois textos "Questão política ou factos que a justiça deve julgar?" estão excepcionais e dão testemunho de uma grande coragem.
Quanto a mim, sei que as esquerdas não resolverão os problemas de fundo tanto a nível nacional como local, antes os agravarão. Quando o povo vir isto, não sei se haverá alguma possibilidade de regresso à integridade do homem, embora eu me agarre à confissão cristã para eclipsar a catástrofe.
Uma coisa garanto aqui: estarei sempre do lado daqueles que ousam o verbo da dignidade e liberdade.

Anónimo disse...

Embora não concorde com alguns das ilações deste excelente texto "Questão política ou factos que a justiça deve julgar?" gostaria de felicitar o autor. Parabéns FBastos!
Deixo também um desejo - espero que as contribuições do(s) orçamento(s) do Estado para as autarquias locais sejam progressivamente reduzidos.
Nada, muito menos o futuro nas novas gerações, merece pagar este preço por um "luxo" destes!
As autarquias precisam de dinheiro? Ganhem-no!

Unknown disse...

"As autarquias precisam de dinheiro? Ganhem-no!"
Eu estou de acordo com estas palavras de Renato Ribeiro.
Por termos vergonha de dizer a verdade, é que as coisas em Portugal chegaram a isto!

Fonseca Bastos disse...

"As autarquias precisam de dinheiro? Ganhem-no!"
Prefiro dizer: poupem o mais possível e gastem cada euro como se fosse o último.
No quadro actual é muito difícil as autarquias ganharem mais sem ceder a, pelo menos, duas tentações que desagradam a qualquer munícipe: mais betão ou elevar significativamente o valor das taxas e impostos.
Em cada município é necessário muito trabalho de análise e ponderação de uma equipa multidisciplinar, para repensar a estrutura administrativa, racionalizar o quadro de pessoal, automatizar tarefas e tornar produtivas potenciais fontes de financiamento a que nunca se ligou importância.
Como quase 80% do território municipal é paisagem protegida, nas actividades ligadas ao rio e à Natureza há muito a explorar.
Não creio que seja impossível consegui-lo em Alcochete, até porque os fundos comunitários para esse efeito continuam a ser generosos.

Anónimo disse...

Quando digo que as autarquias devem ganhar os fundos de que necessitam estou a falar de uma mudança na forma de financiamento. As tentações que o FBastos refere não seriam desencadeadas. Elas já campeiam na paisagem portuguesa à vários decénios.
Quando defendo que devem ganhar os seus fundos quero dizer: se querem fazer alguma coisa, estudem-na e arranjem financiamento. Como: lançando impostos. Se assim fosse veríamos se o amorfismo e o desinteresse generalizado da população se mantinha. E esta pagaria mais impostos? Não. Essa tributação deixaria de ser feita pelo Estado Central. Assim, os cidadãos perceberiam em que seria gasto parte dos seus impostos!
Voltando às tentações: promoção legislativa da cessação do financiamento das autarquias com o imobiliário. E aqui teríamos outra vantagem - a inibição das malquistas influências que, actualmente, redundam em situações como as descritas nos seus textos...