06 janeiro 2006

História repete-se


Baseado em documentação histórica, há dois anos, noutro local, escrevi sobre a extinção do Município de Alcochete, ocorrida em finais 1895. Deliberadamente, fi-lo como se os factos fossem actuais, por já então haver indícios de que a história estava, uma vez mais, a repetir-se. Hoje há novos e piores dados que mais justificam esse pensamento.
Alterei muito pouco ao relato histórico, apenas para o tornar verosímil. Hoje sei que, por momentos, algumas pessoas o tomaram como actual e verdadeiro, embora no final do artigo tivesse alertado para o facto de se tratar de uma mistura de passado e presente. Como aviso parece-me oportuno repor aqui a introdução desse texto, pela similitude dos factos que levaram a uma decisão muito contestada há 111 anos.
Nota importante: as partes destacadas no texto não pertencem ao passado mas ao presente. Mas as do passado dão que pensar. Ou não?

Devido à crise financeira do Estado – reflectida num elevado défice orçamental, na asfixia das finanças públicas, no galopante aumento das despesas correntes, na impossibilidade de garantir receitas suficientes e no consequente engrossar da dívida pública interna e externa – bem como de dificuldades financeiras e de gestão de várias pequenas autarquias, foram extintos 46 municípios, entre eles o de Alcochete.
A decisão, prevista no Código Administrativo, foi conhecida, esta manhã, através de decreto publicado no «Diário da República» [no original é «Diário do Governo»], confirmando a tendência centralizadora do executivo e rumores que circulavam há muito nos meios políticos nacionais e locais.
A opção estatal foi condicionada pela profunda crise nas instituições da República [no original é Monarquia, naturalmente] e da sociedade e, dos inúmeros problemas que se colocam actualmente ao executivo, a questão mais urgente a resolver é a do défice financeiro do Estado, manifestamente incapaz de garantir às autarquias os fundos necessários à sua actividade normal.
Em resultado da incapacidade do Estado e de problemas na gestão de várias autarquias – algumas das quais, incluindo a de Alcochete, estavam impedidas de obter novos empréstimos bancários devido ao seu elevado endividamento – foi oficialmente decidido proceder à reorganização de 46 municípios, extinguindo-os como entidades administrativas autónomas e integrando o respectivo património e atribuições noutros adjacentes que disponham de adequada capacidade financeira e organizacional.
Esses pequenos municípios não estavam em condições de acertar o passo com os restantes, sendo imperiosa a obrigação de os extinguir por não oferecerem condições de sobrevivência. Todos eles se encontravam associados a exageros tributários, medíocres administrações e desperdício de forças de riqueza, em completo desajuste com a política central de restrição financeira. Além disso, esta decisão permite que o erário público economize vários milhões de euros.

O caso de Alcochete: argumentos para a extinção

Nunca podemos dissociar os problemas de uma escala nacional daqueles que atormentavam frágeis estruturas municipais. O isolamento e a autonomia da maioria dos pequenos municípios agora extintos eram algumas das batalhas do governo central, visando a obtenção do máximo controlo possível sobre o país.
A supressão de concelhos é uma das principais medidas adoptadas com vista a um aumento do controlo efectivo, aliado à consequente vantagem da poupança dos orçamentos destinados aos municípios.
Há alguns meses, precedendo a decisão agora conhecida, a Administração Distrital de Setúbal inquirira os vários municípios acerca da sua capacidade efectiva de permanecerem, ou não, com o estatuto de autonomia local.
O inquérito respeitante a Alcochete relata valiosas informações sobre o estado do município agora extinto.
Apesar de não ser uma escrita de todo isenta, uma vez que o recurso ao referido inquérito constitui o principal argumento para fazer valer a ideia da reintegração noutro município, não deixamos de mencionar alguns aspectos negativos que são apontados às administrações alcochetanas.
Segundo o inquérito, alguns investimentos planeados eram injustificados e desnecessários e não tinham cobertura orçamental assegurada. Muitas estradas concelhias estavam ao abandono, há uma dívida enorme a bancos e algumas taxas lançadas sobre os munícipes são vexatórias.
Concluíram os inquiridores distritais que o município de Alcochete não dispunha de "suficientes recursos para custear (...) os encargos de concelho".


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