Retorno à questão da auditoria ao município – anunciada pela coligação CDU no programa de acção submetido ao sufrágio dos eleitores do passado 9 de Outubro, assunto abordado neste texto – e ao silêncio dos eleitos no mandato anterior sobre matéria que não pode nem deve cair no esquecimento: conheciam ou não pormenores da gestão e o estado das finanças municipais? Se desconheciam, por que não denunciaram a indisponibilidade de informação relevante às entidades fiscalizadoras e judiciais competentes? Que os levou a omitir aos cidadãos, nomeadamente através dos meios de comunicação social, a inexistência de informação suficiente?
Socorro-me de legislação que o cidadão comum desconhece mas que os eleitos locais não podem nem deviam ignorar, para demonstrar existirem mecanismos legais suficientes para agir.
Desculpem a extensão do texto (dividido em dois capítulos), amplamente justificada pela importância intrínseca do tema.
Principiemos pelo Estatuto dos Eleitos Locais (Lei n.º 29/87, de 30 de Junho), cujo art.º 4.º (Deveres), na redacção actual estatui o seguinte:
"No exercício das suas funções, os eleitos locais estão vinculados ao cumprimento dos seguintes princípios:
"1 - Em matéria de legalidade e direitos dos cidadãos:
"a) Observar escrupulosamente as normas legais e regulamentares aplicáveis aos actos por si praticados ou pelos órgãos a que pertencem;
"b) Cumprir e fazer cumprir as normas constitucionais e legais relativas à defesa dos interesses e direitos dos cidadãos no âmbito das suas competências;
"c) Actuar com justiça e imparcialidade.
"2 - Em matéria de prossecução do interesse público:
"a) Salvaguardar e defender os interesses públicos do Estado e da respectiva autarquia;
"b) Respeitar o fim público dos poderes em que se encontram investidos;
"c) Não patrocinar interesses particulares próprios ou de terceiros de qualquer natureza quer no exercício das suas funções quer invocando a qualidade de membro de órgão autárquico.
"Não interferir em processo administrativo, acto ou contrato de direito público ou privado, nem participar na apresentação, discussão ou votação de assuntos em que tenha interesse ou intervenção, por si ou como representante ou gestor de negócios de outra pessoa, ou em que tenha interesse ou intervenção em idênticas qualidades o seu cônjuge, parente ou afim em linha recta ou até ao 2.º grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem viva em economia comum;
"e) ........ [texto irrelevante para o caso];
"f) Não usar para fins de interesse próprio ou de terceiros, informações a que tenha acesso no exercício das suas funções.
"3 - Em matéria de funcionamento dos órgãos de que sejam titulares:
"a) Participar nas reuniões ordinárias e extraordinárias dos órgãos autárquicos;
"b) Participar em todos os organismos onde estão em representação do município ou da freguesia".
Em matéria de Direitos, o art.º 5.º, alínea g), estatui ainda que os eleitos locais gozam de "livre circulação em lugares públicos de acesso condicionado quando em exercício das respectivas funções". A alínea o) estatui terem direito a "solicitar o auxílio de quaisquer autoridades, sempre que o exijam os interesses da respectiva autarquia local"; a alínea p) que gozam da "protecção conferida pela lei penal aos titulares de cargos públicos" e a alínea q) que gozam de "apoio nos processos judiciais que tenham como causa o exercício das respectivas funções".
Consequentemente, em matéria de deveres e direitos os eleitos locais gozam de prerrogativas para agir quando consideram estarem em causa interesses da autarquia e dos cidadãos.
Mas há muito mais em matéria legislativa aplicável aos eleitos locais.
Vejamos o importantíssimo Estatuto do Direito de Oposição (Lei n.º 24/98, de 26 de Maio), cujo art.º 1.º estatui ser "assegurado às minorias o direito de constituir e exercer uma oposição democrática [...] das autarquias locais de natureza representativa, nos termos da Constituição e da lei".
O art.º 2.º da mesma lei (Conteúdo) tem a seguinte redacção actual:
"1 - Entende-se por oposição a actividade de acompanhamento, fiscalização e crítica das orientações políticas [...] das autarquias locais de natureza representativa.
"2 - O direito de oposição integra os direitos, poderes e prerrogativas previstos na Constituição e na lei.
"3 - Os partidos políticos representados [...] em quaisquer outras assembleias designadas por eleição directa relativamente aos correspondentes executivos de que não façam parte, exercem ainda o seu direito de oposição através dos direitos, poderes e prerrogativas concedidos pela Constituição, pela lei ou pelo respectivo regimento interno aos seus deputados e representações".
Expressamente, o art.º 3.º (Titularidade), estatui serem "titulares do direito de oposição os partidos políticos representados [...] nos órgãos deliberativos das autarquias locais e que não estejam representados no correspondente órgão executivo"; serem "também titulares do direito de oposição os partidos políticos representados nas câmaras municipais, desde que nenhum dos seus representantes assuma pelouros, poderes delegados ou outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício de funções executivas" e a "titularidade do direito de oposição é ainda reconhecida aos grupos de cidadãos eleitores que como tal estejam representados em qualquer órgão autárquico [...]".
Repare-se ainda na redacção do n.º 4 deste artigo: "O disposto na presente lei não prejudica o direito geral de oposição democrática dos partidos políticos ou de outras minorias sem representação em qualquer dos órgãos referidos nos números anteriores, nos termos da Constituição".
Passemos ao art.º 4.º (Direito à informação):
"1 - Os titulares do direito de oposição têm o direito de ser informados regular e directamente pelos correspondentes órgãos executivos sobre o andamento dos principais assuntos de interesse público relacionados com a sua actividade.
"2 - As informações devem ser prestadas directamente e em prazo razoável, aos órgãos ou estruturas representativas dos partidos políticos e demais titulares do direito de oposição".
O art.º 5.º (Direito de consulta prévia) estatui que "os partidos políticos representados nos órgãos deliberativos das autarquias locais e que não façam parte dos correspondentes órgãos executivos, ou que neles não assumam pelouros, poderes delegados ou outras formas de responsabilidade directa e imediata pelo exercício de funções executivas, têm o direito de ser ouvidos sobre as propostas dos respectivos orçamentos e planos de actividade".
O art.º 6.º (Direito de participação) menciona que "os partidos políticos da oposição têm o direito de se pronunciar e intervir pelos meios constitucionais e legais sobre quaisquer questões de interesse público relevante, bem como o direito de presença e participação em todos os actos e actividades oficiais que, pela sua natureza, o justifiquem".
O art.º 8º (Direito de depor) estatui que "os partidos políticos da oposição têm o direito de, através de representantes por si livremente designados, depor perante quaisquer comissões constituídas para a realização de livros brancos, relatórios, inquéritos, inspecções, sindicâncias ou outras formas de averiguação de factos sobre matérias de relevante interesse nacional, regional ou local".
Chamo ainda a atenção para o teor do ar.º 10.º (Relatórios de avaliação), que me parece não estar a ser respeitado na autarquia municipal de Alcochete:
"1 - O Governo e os órgãos executivos das regiões autónomas e das autarquias locais elaboram,até ao fim de Março do ano subsequente àquele a que se refiram, relatórios de avaliação do grau de observância do respeito pelos direitos e garantias constantes da presente lei.
"2 - Esses relatórios são enviados aos titulares do direito de oposição a fim de que sobre eles se pronunciem.
"3 - A pedido de qualquer dos titulares mencionados no número anterior, podem os respectivos relatório e resposta ser objecto de discussão pública na correspondente assembleia".
Salto o n.º 4, que não tem aplicação nas autarquias locais, chamando a atenção para o teor do parágrafo seguinte:
"5 - Os relatórios referidos nos números anteriores são publicados [...] no diário ou boletim municipal respectivo, conforme os casos".
Alguém viu, até hoje, este relatório de avaliação regularmente publicado nos órgãos informativos do município?
Fica para o próximo capítulo a tipificação dos crimes dos titulares de cargos públicos.
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