22 janeiro 2006

Não é a saúde que falha, são as pessoas

Não dispondo o Estado de receitas suficientes para subsidiar todos os projectos que os 308 municípios lhe apresentam anualmente, os autarcas têm de ser sensatos na definição de prioridades.
A experiência mostra, há vários anos, ser prudente que o poder local se abstraia de ambições eleitoralistas e seleccione os projectos a financiar pela administração central em função da satisfação de necessidades básicas ou da utilidade dos empreendimentos para o maior número de cidadãos.
Para reavivar a memória, eis alguns dados factuais.
O Programa de Investimentos e Despesas de Desenvolvimento da Administração Central (PIDDAC) em 2006 prevê para investimentos em Alcochete as seguintes verbas: 52.865 euros para a construção da nova biblioteca pública; 35.000 euros para o reapetrechamento da Escola EB El-Rei D. Manuel I e mais 174.340 euros para construção do respectivo pavilhão desportivo; 109.829 euros para a alteração do entroncamento da EN4 com a via de acesso ao centro de estágio do Sporting; 100.000 euros para apetrechamento da Escola Secundária de Alcochete e 51.656 euros para a remodelação do parque escolar.
Em 2005, o mesmo PIDDAC reservava ao concelho de Alcochete 94.500 euros para a nova biblioteca pública; 247.479 euros para o pavilhão gimnodesportivo da Escola EB El-Rei D. Manuel I; 34.860 euros para a alteração do entroncamento da EN4 com a via de acesso ao centro de estágio do Sporting e 154.500 euros para o apetrechamento da Escola Secundária de Alcochete.
E em 2004 foram reservados 33.750 euros para a biblioteca pública; 25.000 euros para o entroncamento da EN4; 470.000 euros para a construção da Escola Secundária; 17.273 euros para a remodelação e conservação do parque escolar e 149.640 euros para a construção da sede da Sociedade Filarmónica Progresso e Labor Samouquense.
Somem-se a isto 650.000 euros aplicados pelo Estado na construção do fórum cultural – cuja obra financiou em 32,5% do valor inicialmente orçamentado – mais o que será investido na construção de uma avenida a que, pomposamente, chamaram Variante Urbana.
Nestes três anos o Estado cativou para Alcochete verbas destinadas a obras não imprescindíveis e mal planeadas que ultrapassam 1.100.000 euros, enquanto continuam sem solução problemas antigos e prementes, tais como os das extensões de saúde de Samouco e São Francisco (que, em conjunto, servem quase 4.000 pessoas), assunto focado nesta notícia do jornal «Sem Mais».
Suponho que a quarta parte da verba cativada para obras dispensáveis em face das limitações orçamentais do Estado seria suficiente para dotar ambas as freguesias de instalações de saúde com um mínimo de condições funcionais.
O populismo para consumo local parece-me inútil – até porque, a médio prazo, tem efeitos contraproducentes – e os recados ao poder só têm algum efeito se transmitidos nos meios de comunicação de expansão nacional.
Há que combater o isolamento de quem se situa a 30kms do Terreiro do Paço, refinar os métodos de contacto e de comunicação e agir mais ao nível institucional (membros do Governo, deputados da oposição, etc.) ou, como passado, influenciar as pessoas certas na hora exacta.
Pelo menos desde os anos 60 que, salvo raras excepções, as principais obras que o Estado financiou em Alcochete resultaram da intervenção directa de dois tipos de pessoas: das que tinham raízes locais e ascenderam a órgãos de decisão do poder central ou das que, desconhecendo o concelho, foram convidadas a observar a realidade, compreenderam os argumentos dos autarcas e ficaram sensibilizadas.
Daí que me pareça estéril e condenada ao insucesso a via reivindicativa e populista detectada na notícia cuja hiperligação forneço acima. Suponho que a solução depende, sobretudo, da capacidade de persuasão, de persistência e da racionalidade de argumentos.
Vale a pena recordar uma história curiosa, passada há menos de quatro anos, relacionada com o posto de combustíveis construído a poucas dezenas de metros de edifícios de habitação e de uma escola, na Urbanização dos Barris, em Alcochete.
Após ter prometido, em campanha eleitoral, recusar o licenciamento da obra, poucos meses depois o presidente da câmara então recém-eleito declarava-se impossibilitado de o fazer, devido a compromissos legais assumidos pelo antecessor. Provavelmente, teria sido possível dar a volta ao problema por outra via: o presidente da empresa petrolífera proprietária do posto era pessoa que conhece muitíssimo bem o concelho. É filho de uma alcochetana e de um homem a quem Alcochete ficou a dever alguma coisa nas décadas de 50 e 60, tendo na juventude passado férias numa propriedade então situada a poucas centenas metros do local onde hoje está o posto de combustíveis que, com toda a probabilidade, terá sido uma das dezenas de justificações para a derrota eleitoral do presidente da câmara eleito em finais de 2001.
Que tem isso a ver com as extensões de saúde de Samouco e São Francisco?
Se houvesse algum relacionamento regular entre eleitos e eleitores; se a recepção aos novos moradores fosse mais que propaganda e autopromoção; se houvesse a preocupação de conhecer o perfil profissional dos novos residentes e de os sensibilizar para problemas locais pendentes, descobrir-se-ia existir uma reserva estratégica eventualmente útil mas inaproveitada: habitam em Alcochete inúmeras pessoas importantes em múltiplas ocasiões. Algumas têm intervenção directa e indirecta em centros de decisão do Estado.
Lá diz o ditado: "quem não tem cão, caça com gato".

Sem comentários: