22 maio 2006

Em honra de um grande alcochetano!

O dr. José Grilo Evangelista escreveu, em 1949, um dos mais sucintos e esclarecedores textos acerca da restauração do concelho de Alcochete, ocorrida a 13 de Janeiro de 1898.
Cerca de meio século volvido, no extinto jornal «A Voz de Alcochete» (edição n.º 7, Ano 1), de Janeiro de 1949, o dr. José Grilo Evangelista, destacado médico e poeta local, exortava os mais novos a recordarem a restauração do concelho, com um artigo intitulado «Restauração do concelho de Alcochete - Exortação aos Novos».
É bom saber que o Dr. José Grilo Evangelista nasceu a 11 de Novembro de 1895, em Alcochete, e faleceu a 24 de Dezembro de 1972 (em «Antologia de Poetas Alcochetanos», II vol., podem encontrar-se alguns das centenas de poemas que este ilustre médico nos legou).
Na actualidade, quando para a maioria a data da Restauração do Concelho já nada significa e mesmo a nível institucional vai perdendo relevância, vale a pena recordar o que foi escrito em 1949 por esse ilustre clínico que, em vida, jamais negou assistência aos pobres.
Eis, na íntegra, esse artigo do dr. José Grilo Evangelista. É longo, bem sei. Mas vale bem a pena recordar o pensamento de um Homem que serviu, amou e prestigia Alcochete:

"Para os alcochetanos, Janeiro encerra duas datas indeléveis: Em 15 se restaurou o Concelho, em 30 se reintegrou o arquivo municipal.
Foi em 1898. Já vai um ano a transbordar de meio século! - um nada na revolução dos tempos! - uma eternidade na vida de uma flor!
Recordar o que então se passou (1895-1898) sabe bem neste começo de 49, brumoso, friorento, enigmático.
Vão maus os tempos.
Vive-se uma vida agreste, açoitada por um vento sibilino, em rajadas ciclónicas, numa tempestade inclemente que tudo pretende subverter.
As paixões ideológicas cegam os homens e não raro a torrente galga o penedio das margens para se levantar em ondas encapeladas, plenas de facciosismo, tentando derrubar os fundamentos da sociedade, tudo encharcando, tudo nivelando na mesma vasa enganadora, estonteante, demoníaca.
Acordar os novos é, pois, uma obra meritória. Arrancá-los à nirvana embaladora, integrá-los na tradição de seus maiores, prendê-los à História da Terra em que nasceram, subtraí-los à indiferença, fazê-los viver e sentir o amor da Pátria é uma obra de obrigação e de devoção para quantos, já hoje, hajam dobrado, como eu, o alteroso «cabo das tormentas» da vida.
Recordemos por isso, nesta data, a página, porventura a mais dolorosa e mais nobre da nossa História Concelhia, para que os novos aufiram dela ensinamento e fervor patriótico e, como prólogo, façamos a declaração prévia de que, se como alcochetanos somos forçados a reprovar factos e atitudes de certo modo insolentes, isso o fazemos sem prejuízo das relações amistosas que é de boa norma e da mais elementar cortesia existirem entre povos vizinhos.
Setembro de 1895. Era então Ministro do Reino o ConseIheiro João Franco.
O Governo com o fim de centralizar mais os serviços do Ministério ao Reino, estudou e decretou uma reforma administrativa pela qual foram suprimidos muitos Concelhos do País.
Desta sorte, quase ditatorialmente, naquele triste Outono de 95, a nossa Terra viu-se esbolhada da sua autonomia administrativa, bem como de todos os privilégios que, desde tempos imemoriais, vinha disfrutando.
Não é fácil descrever a dor de quem tão dura e injustamente se vê privado da sua liberdade; não se descreve o sofrimento moral de quem, imolado à fúria legisladora, se vê na dura obrigação de prestar vassalagem ao jugo vexatório de estranhos, e muito menos, quando, nesses estranhos, é manifesto o propósito firme de nos exterminar.
Calcule-se pois a mágoa deste povo, quando, na manhã de 30 de Setembro de 1895, se apresentou aqui em nossa Terra, aqui em nossa casa, um empregado do Concelho de Aldegalega, escudado por numerosa força pública, e munido de um simples alvará do Governo Civil, a exigir a entrega de todos os documentos, móveis e títulos do nosso arquivo municipal.
A ânsia de agravar a nossa sensibilidade foi tal, que nem se esperou pelo cumprimento das formalidades do estilo, nem ao menos pela publicação do decreto da supressão no «Diário do Governo».
Eu não sei se nessa tristíssima manhã o sol deixou de brilhar intenso no azul do firmamento, mas o que sei, do que tenho a certeza plena, é que nesse dia 30 de Setembro de 1895, nesse dia funestíssimo em que passámos a ser vassalos forçados de Aldegalega, não houve peito de alcochetano que não gemesse angustiado, não houve lar nesta Terra que se não amortalhasse num silêncio profundo, silêncio feito de mágoa, silêncio feito de dor, silêncio feito de raiva.
Começou, então, a nossa tortura.
Começou assim o nosso cativeiro, que havia de durar anos, dois longos anos, sofridos de lágrimas nos olhos, mas também de dignidade altiva, de luta heróica, tremondo, incessante, luta de vencer ou morrer.
Escrevi há pouco que fôramos injustamente privados da nossa autonomia.
De facto, muitos concelhos do País, bem mais pequenos do que o nosso e alguns até dentro do próprio distrito de Lisboa, a que então pertencíamos, foram poupados.
Tão pouco nos era desfavorável o coeficiente populacional, com quase 25% de indivíduos sabendo ler e escrever e com mais cidadãos elegíveis para os corpos administrativos do que o próprio concelho em que fomos incorporados.
E, quanto a recursos económicos, saiba-se de uma vez para sempre que Alcochete não devia cinco réis a ninguém.
Pelo contrário: do seu cofre transitaram para o de Aldegalega valores que, na moeda de hoje, andariam para cima de mil contos.
Imolados assim sem uma razão forte, sem um motivo assaz poderoso, resultou ao menos do nosso sacrifício algum bem para Alcochete?
Que o diga a análise imparcial dos factos.
A conduta do município absorvente para connosco pode resumir-se em poucas palavras:
- Incompatibilizar entre si as freguesias do concelho extinto.
- Desvalorizar o seu património; e
- Utilizar em proveito próprio os seus rendimentos.
Hipocritamente revestiu de crepes as armas do seu Paço Municipal como se de sentimento estivesse pela nossa autonomia perdida, e, para nos suavizar a mágoa, deixou correr à revelia as nossas mais pequenas e urgentes necessidades, desbaratou quase por completo o famoso Pinhal do Concelho, agravou desmedidamente os impostos (só o do pão sofreu um aumento anual de 2.162$000, ou seja quase 70 contos de hoje).
Até nos próprios serviços públicos entrou a corrupção, dispensando-se empregados nossos, que o eram de direito, para apaniguar protegidos e afilhados. E, finalmente, a coroar todo este descalabro administrativo, mil e uma picuinhas impertinentes e vexatórias.
Eis a súmula, rápida mas exacta do nosso aviltante Cativeiro; eis um dos frutos, bem sezonados da reforma administrativa de João Franco.
Como não podia deixar de ser, Alcochete reagiu e reagiu bem. A luta atingiu, por vezes, uma violência extrema. Sucederam-se as representações, uma delas dirigida até ao próprio Chefe Supremo da Nação, a Sua Majestade.
Publicaram-se folhetos, artigos em jornais, moveram-se as mais altas influências, espumavam-se ódios, esboçavam-se conflitos pessoais e a tal ponto subiu o desespero do povo desta Terra que, certo dia, fez saber oficialmente aos Poderes Constituídos, que preferia ser simples freguesia do Concelho de Canha restaurado, a sê-lo de Aldegalega, engrandecida pela ditatorial reforma de João Franco.
Estamos agora em princípios do ano de 1897. O partido progressista assume o poder. José Luciano de Castro promete remediar o erro de João Franco, mandando restaurar os concelhos suprimidos. Mas... às freguesias rurais faculta-se-lhes o direito de não acompanharem as cabeças do concelho na sua reintegração.
Para isso basta que a maioria dos seus habitantes o requeiram. Nomeiam-se comissões distritais. Nomeia-se a Comissão Central que tudo apreciará em última instância.
Vão queimar-se os últimos cartuchos. Aldegalega pretende à viva força que Samouco requeira para lhe continuar anexado. Domingos Tavares, Presidente da Câmara, na noite de 14 de Março, vai em pessoa a Samouco, com música e foguetes. Promete o arruamento da freguesia e a conclusão de uma estrada, oferece restos de madeira do depauperado Pinhal do Concelho e, por fim, intima os habitantes da freguesia a assinarem o requerimento a favor de Aldegalega.
Entretanto, Alcochete, submete ao exame da Comissão Central uma bem fundamentada exposição em que analisa uma por uma as razões que lhe assiste e rebate com vigor as malévolas pretensões de Aldegalega.
O entusiasmo e a esperança são cada vez maiores. Crê-se firmemente na vitória.
Decorrem mais alguns dias. A Comissão Central elabora o seu parecer e entregou-o ao Governo.
A ansiedade é enorme. A toda a hora se espera a publicação do Decreto libertador.
Na estação Telégrafo-Postal é contínua a afluência de gente. Todos querem notícias.
Muitos operários da construção civil e alguns rurais negam-se a ausentarem-se do Vila no ânsia de festejarem a boa nova.
Na ponte-cais, os barcos da carreira de Lisboa são esperados impacientemente.
Não há casa em Alcochete, de rico ou de pobre, onde não hajo foguetes, foguetes guardados em silêncio, foguetes que rebentarão com estrépito na hora da vitória.
Vive-se nervosamente.
Vive-se febrilmente.
Afinal de contas a feliz notícia chegou duma maneira curiosa a Alcochete.
A Farmácia Gameiro era um dos pontos de reunião obrigatória de muitos magnates locais daquele tempo. Na noite de 14 de Janeiro encontravam-se ali reunidos, como de costume, o Prior Sá Ferreira, António Carlos da Cruz, Manuel da Piedade Pereira, Estêvão Monteiro Grilo, José Francisco Evangelista, António Alves Júnior e outros mais. Discutia-se animadamente o assunto de sempre.
Em dado momento, alguém entrou, pálido e açudado. Era Nicolau Francisco Freire, amanuense aposentado da Câmara, e muito da intimidade do Senhor Marquês de Soydos. Mal podia falar, preso da intensa comoção.
«Meus queridos amigos - disse a meia voz, quase a medo - o decreto restaurando o nosso querido Concelho já está na Imprensa Nacional. É publicado amanhã. Chegou mesmo agora o Senhor D. João (D. João Pereira Coutinho) vindo de Lisboa, com essa notícia muito em segredo.
Eu é que não tive mão em mim que não lhes viesse contar. Mas... pelo amor de Deus... não me comprometam. O Senhor D. António (D. António Pereira Coutinho, Marquês de Soydos, mandou-me agora mesmo pedir as bandeiras para engalanar o bote em que há-de vir amanhã o Senhor D. Miguel, com a notícia oficial».
Ainda não tinha acabado e já rebentava nos ares e no silêncio da noite um foguete «primeiro ai de um povo desoprimido. Manuel da Piedade Pereira, o velho «Canhum», mal escutara Nicolau Freire, correra farfalhudo a casa e impando de satisfação e chorando de alegria, dera o sinal de alarme. Daí em diante ninguém mais sossegou nessa Terra toda a santa noite: os foguetes sucediam-se uns após outros, numa fúria louca.
Eram às dezenas, às centenas, talvez aos milhares, de toda a parte, cruzando-se e reeruzando-se, estalando ensurdecedoramente.
A população do Concelho secundou a da Vila com o mesmo entusiasmo. Chorava-se de satisfação. Chorava-se de alegria.
Nas ruas pejadas de gente, abraçavam-se uns aos outros. A filarmónica, reunida à pressa, percorreu as ruas da vila, no meio de muito povo, de muitos vivas, de muito fogo, tocando o «Hino da Restauração» esse Hino que um alcochetano compôs, (João Baptista Nunes Júnior) e que todos nós alcochetanos sabemos cantar e sentir.
Ia, enfim, soar a hora da libertação!
Duas semanas depois, no dia 30 de Janeiro, entrava solenemente nos seus Paços Municipais o Arquivo do Concelho de Alcochete, não trazido por um simples oficial de diligências mas sim pelas mãos fidalgas de D. António Pereira Coutinho, o primeiro presidente do município restaurado. Muito propositadamente o fora buscar em pessoa a Aldegalega, o ilustre marquês de Soydos, com D. João Pereira Coutinho, António Luís Nunes e José Francisco Evangelista.
A população inteira, acompanhada pela filarmónica, esperou, fremente de alegria e comoção, à entrada do Concelho, a um quilómetro para lá de São Francisco. Dali partiu, depois, o cortejo em direcção à Vila, percorrendo todas as ruas lindamente engalanadas com bandeiras e ricas colgaduras, sempre no meio de um entusiasmo indescritível, chegando a tal ponto que, num certo momento, o povo desatrelou os cavalos do carro onde ia o Senhor Marquês e assim o levou em triunfo até aos Paços do Concelho. Este gesto de tal forma o impressionou que lhe deu causa a um pequeno delíquio.
À noite não houve edifício público, não houve casa particular, rica ou pobre, grande ou pequena, que não iluminasse a sua fachada em sinal de regozijo.
Desta forma começaram as festas da «Restauração». Eis o seu programa, como outro igual ainda se não realizou em Alcochete:
DIA 31 - Alvorada, tocando a filarmónica uma marcha triunfal expressamente escrita pelo maestro Rosa Martins.
AO MEIO DIA - Bodo aos pobres, seguido de concerto musical na Fábrica dos Fósforos, hoje Asilo Barão de Samora Correia.
ÀS 16 HORAS - Posse da Câmara, dada pelo Administrador do Concelho D. João Pereira Coutinho.
À NOITE - Iluminações pública e particulares.
DIA 1 DE FEVEREIRO - Alvorada.
AO MEIO DIA - Condução da imagem de Nossa Senhora da Conceição da sua Capela para a Igreja Matriz.
À TARDE - Recepção de grande número de convidados de Lisboa, para as festas religiosas.
À NOITE - Ladainha a grande instrumental e continuação da iluminação.
DIA 2 DE FEVEREIRO - Alvorada - Missa solene a grande instrumental em honra de Nossa Senhora da Conceição. Sermão pelo distinto orador Sagrado Dr. Santos Farinha. Procissão percorrendo as ruas da vila.
ÀS 18 HORAS - Solene «Te-Deum», também a grande instrumental, voltando o orar o Reverendo Dr. Farinha.
ÀS 20 e 30 HORAS - Grande banquete na sala nobre do Palácio Pereira Coutinho, durante o qual a filarmónica executou vários trechos musicais, e finalmente, como fecho da festa, uma imponentíssima marcha luminosa, apoteose formidável, estranha faixa de luz, melhor, de fogo, alastradora, interminável, por toda a beira-rio, onde dezenas de barricas, alcatroadas, ardiam fantasticamente.
E, para tudo haver nessa marcha rubra de calor e frenesim, nem faltarem mãos delicadas de mulheres, sustentando, gentis e orgulhosas, clássicos e portuguesíssimos archotes.
Assim terminaram, exuberantes de alegria e de nobreza, as grandes Festas da Restauração, consoladora recompensa de dois anos de martírio, estupenda manifestação de uma liberdade reconquistada.
Dormem já o sono da morte a maior parte desses esforçados batalhadores a quem Alcochete tanto ficou devendo.
Velhos e gastos estarão por ventura os poucos que ainda vivem.
A ilustre família Pereira Coutinho
D. João de Alarcão
Conselheiro Pereira de Miranda
José Alexandre de Sousa
José Maria de Brito
Beneficiado Francisco José de Oliveira
Manuel Gonçalves Caixeiro
António Alves Júnior
Coronel Ramos da Costa
António Luís Nunes
José Francisco Evangelista
António Carlos da Cruz
José Luís da Cruz e tantos outros.
Recordar seus nomes neste momento é um consolador dever de gratidão.
Para os vivos, se algum ainda vivo está, deve ir o testemunho do nosso carinho.
Para os mortos, o preito sentido da nossa saudade.
Homens de Alcochete, novos e velhos que, de qualquer forma estais presos a este torrão, olhai para trás, à distância de quase meio século.
Dirigentes responsáveis locais, meditai nesta página da nossa existência concelhia.
Rapazes de Alcochete, aprendei nela o muito que ela vos ensina.
Saibam os primeiros zelar por este património, que é nosso, que é de todos nós, acrescentando-o sempre, melhorando-o constantemente.
Saibam os segundos cerrar quadrado e terçar armas, com a inteligência, com o coração, com o braço, contra certos exotismos que são o oposição ao nosso lema de sempre: Deus, Pátria, Família."

2 comentários:

Alcochetano disse...

Texto bastante esclarecedor dos factos, de uma precisão histórica incrível. Penso que este homem foi um dos mais brilhantes Alcochetanos a pisar este pedaço de terreno.

Muito Obrigado pelo destaque ao Coisas de Alcochete, neste seu blogue.

A opção do anonimato, prende-se com o facto de tudo, nesta minha santa terra ser associado injustamente às crenças e ideologias colando um rotulo social (por vezes/muitas vezes errado), deixando para trás o valor humano que advém do nosso ser. Se for conhecido o meu nome, o Coisas de Alcochete, deixa de ser conhecido pela História de Alcochete, que me esforço em mostrar orgulhosamente e passa ser conhecido pelo “Blog do Fulano X que até se diz que votou em Y e agora quer falar de História”
O objecto, o blog, não precisa de um nome. Ele já tem um nome: Alcochete.

Mais uma vez obrigado pelo destaque.

Fonseca Bastos disse...

Alcochetano:
Compreendo os motivos que o levaram a decidir ocultar a identidade. Continue.
Se precisar de documentação ou imagens que eu possua em arquivo, não hesite em solicitá-las por e-mail.
O seu esforço é muitíssimo valioso.
Ao dispor,