29 setembro 2007

Os erros urbanísticos do paraíso na terra


Pela sua actualidade, transcrevo algumas notas de um artigo de Luís Campos e Cunha, um dos ex-ministros socialistas de José Sócrates, que merecem a minha concordância e apreço nomeadamente como ilustração da doutrina subjacente às normas de planeamento plasmadas nas cartas da associação europeia de urbanistas.

(…) Brasília para aqueles que não conhecem, está organizada e foi concebida para se circular de carro. Em geral não há passeios nem ruas, mas magníficas auto-estradas e alamedas impossíveis de utilizar por peões. De um prédio a outro podem distar umas centenas de metros que a pé significariam um sacrifício desumano, por causa da inclemência do tempo, ou um arrojo desmiolado por poder implicar atravessar uma auto-estrada.

Chegados ao hotel, em qualquer direcção há apenas outro prédio semelhante e igualmente um hotel.

(…) Brasília está organizada por zonas: a comercial, a dos hotéis, a dos bancos, a residencial… e a Alameda do Poder. Nesta alameda, com quilómetros de comprimento, reside o Poder: os ministérios estão todos lá (…).

Brasília foi arrumada, delineada e planeada para ser o que é. Mas as pessoas não gostam de lá viver, embora se recomende a visita. Quando perguntei ao meu anfitrião como era, para um carioca como ele viver em Brasília, ele nem entendeu a pergunta. Perante a minha insistência respondeu-me surpreendido: “Mas eu não vivo aqui, trabalho cá de terça a quinta e o resto da semana trabalho e vivo no Rio com a família”.

E assim era com uma vastíssima maioria de técnicos de várias instituições públicas incluídas como me fui apercebendo.

Este planeamento veio da ideia de que se pode fazer o paraíso na terra, até as pessoas chegarem e não gostarem. Esta ideia estava profundamente enraizada na mentalidade dos anos 50, dominada pelo pensamento marxista do planeamento e que estava presente nos arquitectos Lúcio Costa e O. Niemeyer. O próprio Niemeyer era (ou é) um comunista, mais ou menos militante. Não é pois de estranhar que Brasília fosse planeada como foi. Só não é estalinista porque a genialidade dos arquitectos e a alegria brasileira não o permitiriam. Mas é desumana. Lúcio Costa, aliás, apercebendo-se disso chegou a defender a revisão do plano de que era co-autor.

Ora a Lisboa pombalina, reconstruída do terramoto de 1755, era a Brasília do seu tempo. Rua do Ouro, Rua da Prata, Rua dos Sapateiros, Rua dos Correeiros, Rua do Comércio… e claro uma praça do poder, onde ficam os ministérios ainda hoje conhecida por Terreiro do Paço. Era filosoficamente a mesma ideia. A vida das pessoas podia ser planeada, organizada racionalmente. O despotismo iluminado não era mais que o racionalismo no poder. A confiança cega no poder da razão. Por outro lado o marxismo foi a última corrente do racionalismo no poder. O circuito fecha-se: o mesmo racionalismo que levou ao despotismo e à superorganizada Baixa Pombalina exactamente 200 anos depois levou ao marxismo e à cidade de Brasília.

(…) Também a Baixa (Pombalina) foi detestada na sua época e ainda hoje ninguém deseja lá viver. O mesmo não direi da zona alta do Chiado, de Santa Catarina ou do Príncipe Real. São zonas igualmente antigas, mas humanamente construídas, organizadas para se viver e não para se ter o paraíso na terra.

Penso que a Baixa está condenada a servir apenas para trabalhar, mas para viver longe dali. Tal como o meu anfitrião que trabalhava em Brasília mas vivia no Rio.(Que qualificação devemos atribuir aos locais que não servem para viver nem para trabalhar?!).

A aparente falta de ideologia das decisões de políticas públicas; em Portugal como em toda a Europa, é falsa e perigosa: certamente ela existe e a sua ausência é apenas isso mesmo, aparente e serve para fugir ao escrutínio público. Daqui a uns 200 anos saberemos quem anda a (pretender) fazer o paraíso na terra.

Sendo um economista, urbanista ou não, Luís Campos e Cunha revela no mínimo, uma enorme sensibilidade em relação aos problemas do planeamento urbanístico das cidades do nosso tempo muito superior à da grande maioria dos autarcas da margem sul. Os exemplos mencionados são directamente aplicáveis a muitos aspectos da realidade “concreta” da Alcochete actual. Os erros urbanísticos são marcas indeléveis aptas a serem perenemente contestadas pelas gerações actual e futuras. Como não saberia o autor discorrer sobre a condição humana inerente à vida da comunidade suburbana?

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