03 abril 2006

Nihilismo ou a liberdade do amor?

Os pais alimentam, vestem, calçam os filhos; o Estado manipula-os.
Essa manipulação começa na Escola. Basta abrir na pág. 151 o manual de língua portuguesa para o 10º ano (Garrido, A., Duarte, C., Rodrigues, F., Afonso, F., Lemos, L., Antologia, Lisboa Editora, Lisboa, 2003) e lermos o seguinte poema de Miguel Torga (Diário, vol. V, 1951):

Vento que passas, leva-me contigo.
Sou poeira também, folha de outono.
Rês tresmalhada que não quer abrigo
No calor do redil de nenhum dono.

Leva-me e livre deixa-me cair
No deserto de todas as lembranças,
Onde eu possa dormir
Como no limbo dormem as crianças.


Dentro do esboço de análise aqui possível, o sujeito desta escrita vê-se no fim de uma estapa que fim de um mundo é ("sou poeira também, folha de outono"). A superbia deste eu leva-o a arredar toda a segurança que o recebido (legado) transmite ("rês tresmalhada que não quer abrigo/ no calor do redil de nenhum dono"). Deste parricídio ou morte da tradição passamos para a segunda estrofe que confirma a primeira, confrontando-nos com a absoluta recusa da memória, isto é, do passado ("leva-me e livre deixa-me cair/no deserto de todas as lembranças"). Nesta insolência (hybris), o mundo passaria a ser o limbo (utopia primordial) de uma nova ordem de sonho ("onde eu possa dormir/ como no limbo dormem as crianças"), livre de quaisquer marcas civilizacionais. Estas varrê-las-ia a passagem do vento que levaria o sujeito lírico não se sabe bem para onde ("vento que passas, leva-me contigo").

O Torga deste poema não sabe para onde vai, mas eu sei para onde vão os jovens. Se não soubese, como poderia intitular este trabalhinho como intitulei?

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