29 julho 2009

Padre Cruz nasceu há século e meio

No dia do 150.º aniversário do nascimento do Padre Cruz, recordo aqui um trabalho pessoal de 2003 contendo imagens e documentos antigos, oriundos de colecções particulares, que traçam o perfil de um dos mais distintos alcochetanos, profundamente venerado e respeitado na sua terra e em muitos lares portugueses.

Em inúmeras residências pobres ou ricas do concelho, em vielas históricas e urbanizações modernas, notoriamente um dos elementos decorativos mais comuns das portadas é um quadro de azulejos representando o Padre Cruz.
A veneração não é exclusiva de Alcochete e suas freguesias, porque se repete um pouco por todo o país, embora sem a profusão evidente aos olhos de quantos reparem em pequenos detalhes do urbanismo local.
Além disso, tal como o jazigo do cemitério de Benfica (Lisboa), em que repousam os seus restos mortais, está sempre pejado de flores, também a sua estátua, no centro de Alcochete, não passa um dia sem receber um ramo fresco e viçoso.

Acresce que, não sendo santo – o processo continua pendente no Vaticano – nem o vulto que mais se evidenciou na defesa dos direitos humanos e no engrandecimento da vila, a gratidão e o reconhecimento da sua bondade fazem com que seja o único alcochetano com direito a duas esculturas: a referida estátua e o busto que, tendo-a precedido no mesmo local, seria depois transferido para um terraço do centro paroquial.

Nado no Rossio e baptizado na matriz

Embora haja dúvidas, o Padre Francisco Rodrigues da Cruz terá nascido no antigo Rossio de Alcochete, no dia 29 de Julho de 1859, no n.º 32 do Largo Barão de Samora Correia, sendo baptizado na Igreja Matriz, a 25 de Fevereiro de 1860.
Foi o quarto dos seis filhos que seus pais tiveram. Naturais de Alcochete, Manuel da Cruz e D. Catarina de Oliveira da Cruz, como bons cristãos e fiéis cumpridores dos seus deveres religiosos, educaram seus filhos no temor e amor de Deus.
Na casa em que o Padre Cuz nasceu existe uma placa evocativa, com a seguinte inscrição: "Em 29 de Julho de 1859 nasceu nesta casa de seus pais o padre Francisco Rodrigues da Cruz. A fé do baptismo que o santificou na igreja da nossa terra foi luz divina que iluminou a sua vida sacerdotal. A sua memória é luz bendita que a morte acendeu para não mais se apagar. A Câmara Municipal de Alcochete, 29-7-1950".
Aos nove anos de idade, Francisco, de temperamento vivo e activo, sensível, bondoso e alegre, foi com o irmão José para Lisboa, frequentar como interno o Colégio Europeu, onde estava já o irmão mais velho, Manuel, médico ilustre na vila de Montijo, que pelas suas benemerências lhe erigiu o busto patente num varandim do centro paroquial, conforme acima referi.
Depois, como externo, Francisco frequentou o Mainense, o Instituto Industrial e o liceu, onde estudou retórica, grego e filosofia.

Desde criança que pensava ser sacerdote e até lhe chamavam «Padre Francisco». Seu pai, que também manifestava o mesmo desejo a respeito do filho, ao terminar este os preparatórios em Lisboa perguntou-lhe que vida queria seguir. Ao que respondeu: «A vontade do pai é também a minha».

Entrada na Faculdade de Teologia

Assim, em 1875, com 16 anos de idade, Francisco parte para Coimbra e matricula-se na Faculdade de Teologia, vivendo com outros seis estudantes.
Todos viriam a ser sacerdotes. Em Coimbra foi sempre muito bom aluno, aplicado e bem comportado. No último ano do curso – 1879/1880 – inscreve-se na Congregação Mariana, erecta na Igreja de Santa Teresa e dirigida pelo lente dr. António Sebastião Valente, mais tarde Patriarca da Índia.
A este facto atribuía o Padre Cruz especial importância na orientação da sua vida para a santidade.

Terminado o curso teológico em 1880, com o grau de Bacharel, como não tivesse a idade canónica para ser ordenado sacerdote (contava apenas 21 anos incompletos), vai para o Seminário de Santarém ensinar filosofia, múnus que manteve até 1880.
No dia 3 de Junho de 1882 recebe a ordem de presbítero, conferida por D. António de Freitas Honorato, Arcebispo Titular de Mitilene e mais tarde Residencial de Braga.
Celebra a primeira missa 22 dias depois, num domingo, a pedido dos seminaristas, que nesse dia celebravam a festa de S. Luís, tendo assistido seu pai e irmãos. Sua mãe falecera a 15 de Agosto do ano anterior.
Em Santarém o Padre Cruz começa a sofrer de um esgotamento, que nunca mais o abandonaria e se agrava a ponto de, em 1886, ter de renunciar ao ensino.
Convidado pelo Provedor do Colégio dos Órfãos de S. Caetano, em Braga, para ir dirigir aquela casa, toma conta do cargo nesse mesmo ano. Ali se dedica de alma e coração à formação dos pequenos órfãos, procurando dar ao colégio uma orientação absolutamente religiosa, preocupação que se reflecte numa carta escrita ao Arcebispo de Braga, antes de deixar a direcção do estabelecimento.
Muitos dos seus antigos alunos lhe manifestaram pelos anos fora quanto admiravam, estimavam e amavam o seu antigo director.


Saúde precária até ao fim da vida

A saúde do Padre Cruz era cada vez mais precária, celebrando a missa com dificuldade, e além da direcção do colégio exercia ainda as funções de professor e ajudava o pároco de S. Maximinos, freguesia em cuja área se situava o estabelecimento de ensino.
Em 1894 é forçado a renunciar ao cargo. Não quis, porém, que a direcção do colégio ficasse sem óptimos substitutos. Para isso fez diligências prementes, com cartas e orações, para que os padres salesianos tomassem conta do colégio. O empenho do Padre Cruz foi, deste modo, a razão do estabelecimento dos salesianos em Portugal.

O Cardeal Patriarca, D. José Neto, encarrega-o então da direcção espiritual do Seminário Menor do Farrobo, perto de Vila Franca de Xira, acompanhando um ano depois, em 1896, os seminaristas para S. Vicente de Fora.
Além do trabalho de director espiritual preparava as visitas pastorais do prelado lisbonense às diversas freguesias do patriarcado – sendo por esse motivo apelidado «São João Baptista Precursor» – e exercia o seu ministério sacerdotal na Igreja de S. Vicente e na capela do Conventinho das Clarissas do Desagravo.
Sofreu a perseguição nos últimos anos da monarquia e nos primeiros do regime republicano, sendo duas vezes preso pelas autoridades do novo regime.
Em 1913 dá a primeira comunhão à vidente Lúcia, então com seis anos de idade, e em 1917 vai a Fátima falar com os três pastorinhos, rezando com eles o terço junto do local onde lhes aparecia Nossa Senhora e assegurando-lhes que era a Virgem quem lhes aparecia.

Entrada na Companhia de Jesus


Com 81 anos de idade realiza o sonho da sua vida, fazendo os votos religiosos da Companhia de Jesus, cumprindo assim o voto que fizera em 1886, de entrar nela se Deus lhe desse saúde.
Já em 1901 e 1910 tentara satisfazer o seu desejo, ao que os superiores da Companhia se opuseram.
Finalmente, em 1929, conseguiu de Pio XI fazer os votos religiosos à hora da morte, e de Pio XII, em 1940, emiti-los já, o que fez no noviciado em Guimarães, a 3 de Dezembro desse ano, festa de São Francisco Xavier, santo da sua grande devoção, que tomara por protector, mestre e modelo.
Pio Xll não só o dispensou do noviciado como lhe permitiu continuar a viver fora das casas da sua religião. Contudo, era muito cuidadoso em pedir as devidas licenças aos seus superiores religiosos.

O Padre Cruz vivia só para Deus e para as almas. Até quase à hora morte, a sua vida foi um contínuo peregrinar por todo o Portugal a confessar, a pregar, a abençoar e a consolar, numa palavra, a fazer bem.

Apesar de saúde muito precária, nunca conhecia descanso e quando lho recomendavam respondia: «Temos uma eternidade para descansar». De facto, fazendo-se tudo para todos como S. Paulo, não vivendo para si mas só para almas cuja eterna salvação procurava, não se poupava a trabalhos e sacrifícios para o conseguir.
As suas viagens foram contínuas, usava toda a espécie de transportes, e quando a natureza do caminho não permitia outros, como nas serras, ia de burro ou em cadeirinha de mão.
Cumpria admiravelmente o que pregava aos sacerdotes nas conferências da União Apostólica do Clero.
"A nossa missão é esta : confessar enquanto houver pecadores ao pé do confessionário; pregar enquanto houver ouvintes no templo; e rezar até já não poder mais".
Em 1942, com 83 anos, o seu zelo leva-o ainda a percorrer as ilhas da Madeira e dos Açores. Porém, o seu ministério sacerdotal exerceu-o de preferência junto dos humildes.
Quando o cardeal D. António Mendes Belo, que escolhera o Padre Cruz para seu confessor, o pretende nomear cónego da Sé Patriarcal, o ilustre alcochetano escreve-lhe uma carta, datada de 27 de Março de 1925, repassada de humildade, obediência e zelo da salvação das almas, na qual manifesta o desejo, que considerava especial vocação de Deus, de se dedicar ao apostolado entre "os presos das cadeias, os doentes dos hospitais, os pobrezinhos e abandonados, e tantos pecadores e almas abandonadas".

Alcochete sempre no coração

Preocupação constante do seu zelo era a terra natal. Procurava o seu bem espiritual, arranjando confessores e pregadores para as primeiras sexta-feiras e festividades, pagando a professoras que ensinassem também a doutrina cristã às crianças, quando esse ensino estava interdito, e materialmente socorria famílias necessitadas, mandando dar esmolas aos pobres, em géneros e dinheiro.
Alcochete soube corresponder-lhe com gratidão, sobretudo no 60.° aniversário da sua primeira missa, em 1912, e, ao ser aberta ao público a Igreja Matriz, após as obras de restauro de 1945, afirmaria nessa ocasião o Cardeal Patriarca de Lisboa, D. Manuel Gonçalves Cerejeira: "Alcochete, só por ser a terra do Padre Cruz, virá a ser um dia lugar de peregrinação». Não se enganou, como é bem patente na estátua existente no Largo de São João, junto da qual já observei em recolhimento gente conhecida no país.

O fim de um grande alcochetano

A última vez que o Padre Cruz pôde celebrar missa foi a dia 1 de Dezembro de 1947, prostrado por uma pneumonia. No dia 8 recebe os últimos sacramentos e no dia 12, moribundo, é-lhe recitado o ofício da agonia. Melhora e só a 1 de Outubro do ano seguinte, tendo-lhe sido administrada a comunhão, como de costume, no quarto, depois de breve Acção de Graças, sobrevem-lhe pelas 8h30 um colapso cardíaco.
Suavemente entrega a alma a Deus.
A venerar o cadáver estiveram o Cardeal Patriarca, D. Manuel Gonçalves Cerejeira, que lhe beijou comovido as mãos, monsenhor Umberto Mozzoni, em representação do Núncio Apostólico, e muitas outras pessoas de relevo social na época.
Na tarde do dia 2 de Outubro, o corpo, conduzido processionalmente para a Sé Patriarcal, ali fica exposto, desfilando perante ele, continuamente, dia e noite, milhares de pessoas, querendo tocar naqueles despojos terços, crucifixos, estampas, etc.
No dia seguinte, por determinação do Patriarca, celebram-se solenes exéquias na Sé, presididas pelo próprio, com a assistência do Cabido, de membros do governo e de inúmeras individualidades. Pelas 15 horas realiza-se o funeral, ficando o corpo depositado no jazigo na Companhia de Jesus, no cemitério de Benfica (Lisboa), segundo a vontade expressamente exarada pelo Padre Cruz num documento.
E, tal como a sua estátua em Alcochete, também à porta do jazigo há sempre inúmeros ramos de flores frescas.
O Padre Cruz praticou todas as virtudes em grau extraordinário, dizem-no os que o conheceram. Já em 1894, numa carta dirigida pelo superior dos Salesianos ao vigário geral da Congregação de S. João Bosco, se diz que "o Padre Francisco da Cruz é de uma tal virtude que em Braga costumam chamar-lhe 'o Padre Santo'.

Considerado santo já em vida e atribuindo-se-lhe intervenção poderosa na obtenção de graças maravilhosas, foram feitos pela autoridade eclesiástica os processos canónicos em ordem à sua beatificação.
Esses processos foram entregues à Sagrada Congregação dos Ritos, em 17 de Setembro de 1965, e aprovados em 30 de Dezembro de 1971. Desde que se provem, além disso, dois milagres alcançados pela sua intercessão, a Santa Sé elevará às honras dos altares o Padre Francisco Rodrigues da Cruz, glória da vila de Alcochete. O processo continua pendente no Vaticano.

Documentos complementares para consulta

Os documentos que reproduzo têm a singela finalidade de ajudar a compreender a mística e a fé que rodeiam este alcochetano simples, sereno e bondoso, mas capaz de fazer rir quem o escutava.
Tanto pelos documentos que publico, uma vez mais, como por relatos de quem o conheceu em vida, depreende-se que, já adulto, o padre jesuíta Francisco Rodrigues da Cruz residia em Lisboa mas nunca deixou de voltar regularmente à sua terra.
Atravessava o Tejo no vapor que todos conheciam, carinhosamente, como "O menino", como qualquer outro modesto cidadão, e assim que punha o pé em terra era rodeado por um bando de miúdos, que o acompanhavam nas deambulações pela vila.

Esses miúdos são hoje os avós das mais antigas famílias da vila e seria lamentável se esses testemunhos orais se perdessem para sempre. Porque uma coisa é o que relatam jornalistas, biógrafos e escritores; outra, bem distinta, a vivência dos protagonistas das pequenas histórias do quotidiano.
De cima para baixo, eis a identificação das imagens publicadas:
1 - Uma imagem pouco conhecida do Padre Cruz (da colecção familiar), datada da última parte da sua vida;
2 - Caligrafia e assinatura pessoal num cartão dirigido ao sobrinho-neto, dr. Elmano Alves;
3 - Frontaria da casa situada no Largo Barão de Samora Correia (vulgo Rossio), onde existe a placa que assinala o local de nascimento;
4 - Recorte de jornal da colecção da família
5 - Medalha comemorativa do centenário do seu nascimento (colecção familiar);
6 - A sua última imagem em vida, na qual vem a basear-se o autor da estátua existente no Largo de São João, em Alcochete;
7 - Estátua do Padre Cruz, em Alcochete, da autoria do escultor Luís Valdés Castelo Branco, inaugurada a 15 de Janeiro de 1969.
A maioria desconhece que a face reproduzida no bronze foi obtida a partir da própria máscara funerária;
8 - Imagem da cerimónia inaugural da estátua do Padre Cruz;
9 - Recorte do «Diário de Notícias»

As imagens a cores são minhas e as restantes reproduzidas a partir de documentos originais cedidos pelos drs. Francisco Elmano Alves (sobrinho-neto do Padre Cruz) e João Marafuga

4 comentários:

Melo disse...

Olá a todos:

Mais uma vez fiquei deliciado com este artigo, acho muito importante que v.eXª continui a deliciar-nos com temas destas, sei que isto requer algum tempo de pesquisa.
No entanto, fico satisfeito por estas iniciativas de ploblicação neste blogue de acontecimentos reais, tanto a nível culrural,desportivo e intelectual.
Alcochete é isto mesmo, merece que seja divulgada com a finalidade de promoção de, custumes, raizes e acontecimentos que engrandeceram ou engradeçam o nome de Alcochete além fronteiras.
porque sou um municipe atento a estas coisas do passado, também no presente e prespectivando assim o futuro deste nosso lindo paraiso, que é Alcochete.
Melo

Fonseca Bastos disse...

Há mais disto e, aproveitando o interregno eleitoral, a seu tempo será publicado aqui.

sousa rego disse...

Gosto de ver fotografias antigas .Há quem diga que conseguem captar momentos únicos e toda a energia que deles se desprende.
A fotografia do Padre Cruz que abre o artigo integra-se nestas últimas.
Reparem na mão.É uma mão de dedos fortes a segurar um crucifixo.Mais parece a mão de um camponês do que a de um sacerdote.
E o olhar?Que dizer daquele olhar do Padre Cruz que enche a fotografia?É um olhar profundo que nos fixa directamente.É um olhar de quem já viu tudo.É um olhar tranquilo a transmitir paz e serenidade e,ao mesmo tempo,uma enorme sabedoria do mundo e da vida.A fotografia não traiu a personalidade em causa.

Unknown disse...

Alcochete,terra de Paz e de Luz,terra onde nasceu o nosso querido Padre Cruz.
Olhando a Estátua do Padre Cruz,meu
coração sente a via de Deus,parecendo vêr Jesus com os olhos postos nos céus.
Estes versos são da minha autoria e foram pela primeira ditos no dia 10-1-1988 aos Franciscanos: Frei José Montalverne e Frei António do Couto no Monte Das Oliveiras em Jerusálem,ofereci-lhes tambêm uma medalha de Bronze do Padre Cruz e de Fátima.Agradeceram e disseram-me que tinham convivido muito com o Senhor Padre Cruz,levei tambêm areia da praia de Alcochete,sendo um bocadinho de Portugal até Israel.