05 novembro 2008

Municipalismo de outrora (3): saneamento e salubridade

Av. 5 de Outubro (Alcochete) em época próxima daquela a que se refere texto. É notória a inexistência de asfalto ou empedrado.


Até meados do séc. XX o Largo Alm. Gago Coutinho não teve jardim. Este recanto é aquele em que se situam o jardim, o coreto municipal e o parque infantil.



O primeiro texto desta sequência está aqui.

No final da década de 30 e princípios da de 40 do século passado, a limpeza urbana do concelho fazia-se com vassouras de lentisco e uma das despesas regulares da câmara era a aquisição de molhos desse arbusto, em quantidades por vezes próximas do milhar.
Diz-nos o poeta e prosador alcochetano António Rei que "não havia jardins nem passeios nas ruas" e que "os largos eram terreiros onde os rapazes faziam as suas brincadeiras". As imagens acima exemplificam-no.

Em 1938 os salários do pessoal municipal da limpeza totalizavam 420$00 e, muito frequentemente, a câmara tinha de mandar reparar os veículos de apoio, puxados por muares.
Demonstram imagens da época que os jardins eram inexistentes e o miolo urbano tinha escasso arvoredo. Em todo o caso, as actas camarárias evidenciam que, no Verão, a água para regar essas árvores era transportada em cascos de madeira, adquiridos a 60$00 cada.

Em finais de Janeiro de 1939, à Farmácia Gameiro – então pertencente a António Rodrigues Regatão, fundador e ideólogo do Aposento do Barrete Verde – foram pagos 15$70 de medicamentos para o gado empregue na limpeza camarária. Para a alimentação desse gado gastaram-se também 560$ na aquisição de 400 litros de fava e de 400 litros de aveia.
Além de muitas despesas em alimentação, ferragem e tratamento veterinário, os animais também proporcionavam algumas receitas à câmara. Anualmente, em Outubro, o estrume era vendido em hasta pública. Em Abril de 1942 a venda de um macho e de um burro rende 750$00.
A rede de saneamento urbano de Alcochete foi construída no final da década de 40 e antes dela as águas sujas e dejectos da vila depositavam-se em vasilhas (popularmente denominadas "tigela da casa"), recolhidas de noite por veículos da limpeza camarária, puxados por animais e transportando enormes barricas.
No livro «Embrulhos de Vento Que o Tempo Desembrulha» (edição de autor de 2001 e não comercializada), o já citado António Rei publica um curioso texto sobre saneamento nas décadas de 30 e 40, que não resisto a transcrever com a devida vénia:
"Se não havia água canalizada também não havia esgotos domésticos. As necessidades orgânicas eram despejadas num recipiente de barro, chamado 'tigela da casa', colocado à porta, nos dias marcados, para ser esvaziado num tanque assente em rodas e puxado por um muar.
"O empregado camarário que conduzia era quem transportava as 'tigelas da casa' da porta de cada um e esvaziava no tanque, a 'pipa'. Estes dejectos eram despejados na lixeira situada nos terrenos que hoje em dia são o estádio do Grupo Desportivo Alcochetense. À lixeira dava-se o nome de 'depósito'. Também por vezes eram despejados numa rampa, na muralha das Barrocas, construída de emergência para o efeito.
"Na mesma muralha, mais ou menos frente ao largo chamado 'Cova da Moura', havia uma sentina com duas portas (em forma de H) e as necessidades fisiológicas saíam por um buraco no chão, cimentado, directamente para a praia, onde os caranguejos, à espera, lá estavam de olhos para cima. Se o dejecto era rijo, os caranguejos, com os seus garfos (bocas), jantavam; mas se saía diarreia, os que não traziam colher não jantavam".

Salubridade e decência

Na sessão de 20 de Julho de 1940, o vereador Manuel Ferreira da Costa propõe novas regras para a recolha de águas sujas e dejectos na vila. Eis o teor dessa proposta, aprovada por unanimidade:
"Havendo conveniência, a bem da salubridade pública, em modificar o processo até agora usado de recolha de lixo, águas sujas e dejectos;
"Considerando que outras vilas vizinhas já modificaram o sistema, de maneira a tornar mais decentes aqueles serviços, proponho:
"1 - Que a partir de 1 de Agosto sejam adoptados os seguintes horários para os serviços de limpeza pública:
Nos meses de Maio a Outubro – início dos trabalhos de recolha de dejectos às 02h00 e lixo às 5 horas. Início dos trabalhos de recolha de águas sujas às 09h00;
"2 - Que sejam multados em 20$00 todos os moradores desta vila que a partir das 8 horas até às zero horas conservem na via pública os recipientes de dejectos e caixotes do lixo;
"3 - Que sejam multados em igual importância todos os que não apresentarem os referidos recipientes e caixotes, assim como os de águas sujas, devidamente tapados e exteriormente limpos;
"4 - Que nos meses de Novembro a Abril não seja permitido colocar na via pública caixotes de lixo e recipientes de dejectos antes das 23 horas e depois das 08h00, sob pena de 20$00 de multa".
Uma semana após a aprovação desta proposta, a câmara tomava conhecimento de uma reclamação do delegado de saúde do concelho, o conhecido dr. José Grilo Evangelista, pedindo para que fosse chamada a atenção dos zeladores (fiscais) quanto ao cumprimento das posturas e regulamentos municipais sobre saneamento, "não se explicando que estes muito raramente encontrem motivo para levantar autos de transgressão, se bem que no concelho exista posto da GNR. Só há vantagens para o erário municipal de uma fiscalização mais rigorosa" – escrevia o popular clínico que só há poucos anos teve, enfim, direito a nome em artéria da vila.
Dois anos volvidos, no início do Verão de 1942, o estado da limpeza da vila desagrada também ao vereador António Antunes, que apresenta uma proposta, aprovada por unanimidade, chamando uma vez mais a atenção dos fiscais para a limpeza e higiene das ruas da vila, que "deixam muito a desejar".

Maus hábitos

As primeiras sentinas públicas construídas em Alcochete situavam-se no Largo da Cova da Moura – no bairro das Barrocas, como nos diz António Rei – tendo sido abertas em finais de 1938.
Representaram significativo alívio para o povo, nomeadamente o ribeirinho, por serem praticamente inexistentes sanitários domésticos (excepto em casas e solares de gente abastada, que podia construir fossas sépticas).

Um ano depois essas sentinas públicas abriam meia hora antes do nascer do sol e encerravam à uma da madrugada, tendo os munícipes de pagar $50 pelo uso das "cabinas reservadas".
Alguns tinham maus hábitos, verberados por um autarca, conforme consta da acta de uma sessão de Janeiro de 1940: cuspiam "fora dos escarradores e escreviam frases inconvenientes nas portas e paredes".

O vereador Manuel Ferreira da Costa propôs, e foi aprovado por unanimidade, um regulamento a preceito. Simples e com apenas três artigos: o guarda das sentinas tinha o dever de ir às cabinas após cada utilização, puxando o autoclismo se o utente o não fizesse, devendo comprovar se o reservado estava em ordem. Sempre que algum prevaricador fosse identificado seria alvo de participação aos serviços municipais, pagando multa de 50$. Em caso de reincidência pagaria o dobro.
Provavelmente severo, o mesmo vereador propõe, na sessão de 30 de Março, que os funcionários da câmara sejam punidos por terem o hábito de "criticar actos e deliberações camarárias, bem como decisões dos vereadores, demonstrando falta de disciplina e de escrúpulos". Aprovada por unanimidade, a proposta menciona que "sejam rigorosamente castigados os funcionários que criticarem, em público ou não, as deliberações da câmara e respectivos vereadores".

Enfim, a rede de esgotos

A primeira referência camarária ao estudo da rede de esgotos da vila de Alcochete data de Janeiro de 1939, quando a vereação decide elaborar o estudo e levantamento da respectiva planta topográfica.
Ano e meio depois (1 de Junho de 1940), proposta ditada para a acta pelo chefe da edilidade, Francisco Leite da Cunha, determina o seguinte:
"Considerando a necessidade inadiável de proceder tão urgentemente quanto possível às obras de saneamento da vila de Alcochete, condição essencial do seu próspero desenvolvimento futuro;
"Considerando que a Agência Técnica Electrográfica, com sede na Rua Serpa Pinto, n.º 12-2.º Esq.º, em Lisboa, tem elaborado projecto da rede de esgotos da vila de Alcochete" [...] "a câmara aceita o trabalho da agência, que compreende o estudo completo do estabelecimento da rede de esgotos da vila e compromete-se a pagar por esse trabalho 2% do valor total das obras. Ulteriormente a câmara acordará com a mesma agência sobre a forma de efectuar o pagamento".
A proposta é aprovada por unanimidade e representava para a época decisão arriscada, uma vez que a Europa vivia sob o terror da II Grande Guerra.
Tal como referi em artigo precedente, na sessão de 8 de Setembro de 1941 aprova-se o plano da actividade municipal para os anos seguintes, em cujo capítulo «Melhoramentos» se alude ao abastecimento de água à vila e à construção da rede de esgotos, projectos naturalmente interligados.

Devido ao valor elevado dos investimentos, o executivo da câmara admitia alargar a pauta de impostos indirectos se não houvesse possibilidade de suprir de outro modo as despesas sempre crescentes do município, agravadas com a conflagração mundial.
Estava prevista a negociação de um empréstimo com a Caixa Geral de Depósitos, "para fazer face às despesas com os referidos melhoramentos, em virtude das receitas normais do município não poderem manifestamente comportar o custeamento de obras de tanto valor".


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1 comentário:

Unknown disse...

Quando esta foto do actual Largo Almirante Gago Coutinho foi tirada, aquele terreiro chamava-se Largo do Moisés. É deste andrónimo hebraico que deriva "Moisém", nome que ainda hoje conserva a faixa contígua ao mar.
De facto, em tempos recuados, segundo o historiador local José Estêvão, estas terras pertenceram a uma judeu de nome Moisés.