27 outubro 2008

Municipalismo de outrora (1): autarcas, projectos e a guerra


Com permissão do então chefe da edilidade e a paciente cooperação de duas funcionárias do arquivo municipal, em princípios de 2004 tive a oportunidade de consultar antigas actas da Câmara Municipal de Alcochete.
Convergindo na Câmara Municipal iniciativas e interesses de pessoas, de corporações e de instituições, as actas sintetizam aspirações e realizações do município e, embora não esclareçam todos os factos, representam importante referência histórica, nunca
estudada nem documentada (salvo raras e limitadas excepções de que existem duas edições disponíveis, para venda no Posto de Turismo e para consulta na Biblioteca Pública de Alcochete).
Contudo, por indisponibilidade de tempo, ao fim de algumas semanas de pesquisa vi-me forçado a interromper o trabalho, que ficaria limitado ao curto período de 1938 a 1945.
Embora escassa para a finalidade então traçada, a abundante informação recolhida parece-me valiosa e decidi partilhá-la agora neste blogue, cuja publicação será feita em capítulos nas próximas semanas.
Oxalá estas pistas despertem curiosidade a alguém que, com mais vagar e conhecimento, se predisponha a pesquisar e estudar a imensa e preciosa documentação municipal, rica em pormenores da nossa história contemporânea.
Cabe aqui uma palavra de agradecimento aos ex-autarcas dr. Elmano Alves e sr. Miguel Boieiro que, em épocas distintas e separadas por cerca de duas décadas, foram vice-presidente e presidente da câmara, respectivamente.
Estou igualmente grato ao dr. João Marafuga, alcochetano e profundo conhecedor do passado do concelho. Ao primeiro porque estimulou a pesquisa, ao segundo e terceiro pelo paciente trabalho de revisão e de clarificação de detalhes.

Preâmbulo
Até à revolução de 1974 os órgãos municipais eram a câmara e o conselho municipal, o primeiro na esfera executiva e o segundo na deliberativa.
Previamente à Revolução dos Cravos os municípios gozavam de limitada autonomia administrativa e as suas competências e atribuições eram definidas pela administração central, existia em todos um delegado do governo e os autarcas submetidos a sufrágio eram membros ou apoiantes do único grupo político reconhecido (União Nacional).
Antes da reorganização administrativa decorrente da Constituição de 1976, Alcochete era "concelho rural de 3.ª categoria" e a sua Câmara Municipal tinha uma estrutura mínima e limitados meios financeiros.
Consequentemente, durante décadas os autarcas usaram amigos e correligionários sentados em Lisboa para influenciar decisões políticas e concretizar aspirações, sendo notórios o desenvolvimento económico e os melhoramentos planeados ou conquistados quando, ocasionalmente, abastados proprietários do concelho ascendiam a destacadas posições na capital ou eram chamados a exercer funções no Estado.
Documentos e testemunhos evidenciam que, nomeadamente entre os anos 30 e 60 do século passado, habilmente os autarcas serviram-se de relações familiares, de amizades, de conhecimentos e de conivências políticas para iniciar ou concluir infra-estruturas fundamentais.
As actas do município fornecem pistas sobre esse tráfico de influências, cujos reflexos se avaliam também em jornais locais e nacionais da época.
Convém ainda recordar que, na maior parte do curto período estudado, pontificou na redacção de «O Século» o jornalista alcochetano José André dos Santos ('pai' das Festas do Barrete Verde e das Salinas), que tinha amigos no concorrente «Diário de Notícias».
Foram de tal modo positivos os resultados de influências movidas em dois órgãos da Imprensa de expansão nacional que ainda hoje, em Alcochete e Samouco, há artérias com os nomes desses jornais.
Parece-me curioso referir também que, há cerca de seis décadas, os vereadores de Alcochete não desempenhavam funções a tempo inteiro. Todos – incluindo presidente e vice-presidente da câmara – tinham uma ocupação profissional.
Daí que o horário das reuniões públicas da edilidade variasse, consoante as disponibilidades da vereação ou até da época do ano.
Depois de, nos anos de 1938 e 1939, se terem realizado, semanalmente, a partir das 15h00, no início da década de 40 decorriam aos sábados, depois das 21h00.
Em meados de Outubro de 1940 decide-se que, durante o Inverno, as reuniões da câmara seriam antecipadas para as 20h00, mantendo-se ao sábado.

No princípio de 1941 as sessões ordinárias passam a ser quinzenais, pelo que daí em diante jornaleiros, operários e assalariados camarários receberiam o ordenado quinzenalmente, em vez de semanalmente como até então.
Em 19 de Junho de 1941 a vereação decide que, a partir de 1 de Agosto seguinte, as sessões da câmara passariam a realizar-se às sextas-feiras, continuando a periodicidade quinzenal.
A sequência do trabalho das sessões manteve-se inalterada durante os sete anos estudados: aprovava-se a acta da reunião anterior, lia-se a correspondência recebida, verificavam-se as contas, aprovavam-se pagamentos de serviços e de fornecimentos e entrava-se na discussão da ordem do dia ou da noite, normalmente preenchida com o despacho de requerimentos ou apreciação e votação de propostas do presidente e dos vereadores. As actas eram manuscritas em livro próprio, pelo secretário da câmara.

Autarca vem, autarca vai
Como acima referi, na época Alcochete estava classificado como concelho rural de 3.ª categoria e o mandato dos autarcas não era exercido a tempo inteiro, sendo, frequentemente, condicionado por vicissitudes da actividade profissional dos titulares.
Em Fevereiro de 1939, por exemplo, o vereador Mateus Gonçalves Gomes renuncia ao mandato devido a desentendimento com o dono da farmácia de que era empregado (a Gameiro, na época pertencente a António Rodrigues Regatão, fundador e ideólogo do Aposento do Barrete Verde), sendo forçado a ausentar-se para ganhar a vida por ser "impossível exercer a profissão no concelho".
Mateus Gomes estaria em funções por curto período – segundo se depreende de elogio do presidente, ditado para a acta da sessão em que ocorre a renúncia – sendo substituído na reunião seguinte por Augusto Lopes Condelipes. Mas, por razões de saúde, também o mandato deste duraria somente cinco meses, rendendo-o António Tavares da Silva Falcão Sobrinho.
Em Setembro de 1939 ocorre nova mudança na vereação, na qual se manterá apenas o presidente, Francisco Leite da Cunha, professor do ensino primário na escola masculina da vila (ver imagem acima, da colecção particular do dr. João Marafuga e, presumivelmente, obtida uma década depois daquela a que me refiro. A fotografia foi obtida à porta da Escola Conde de Ferreira, no Rossio de Alcochete, hoje Largo Barão de Samora Correia).
Francisco Leite da Cunha era descendente do Marquês de Soydos, proprietário da Quinta da Praia das Fontes, estando então a seu cargo na câmara os pelouros de finanças, secretaria, educação, estética e urbanização.
Ignoram-se os motivos da substituição da maioria dos vereadores, por serem omissos nas actas.
O novo vereador Manuel Marques Sena fica incumbido da iluminação e da água e Manuel Ferreira da Costa trata da limpeza pública, matadouro, cemitérios, mercado e obras.
Este estaria ligado à empresa proprietária do vapor «Alcochete» – que estabelecia a ligação fluvial com Lisboa e era popularmente conhecido como "o Menino" – pois no final desse mês abster-se-ia de votar mais um pedido de subsídio apresentado por essa sociedade, a Empresa Portuguesa de Navegação Fluvial.
No início dos anos 40 os órgãos autárquicos de Alcochete tinham a seguinte composição: administrador do concelho, Rafael Tavares Murjal; presidente da câmara, Francisco José Pereira Coutinho Facco Leite da Cunha (mais conhecido por Francisco Leite da Cunha e acima citado); presidente substituto, José Nunes Pereira; vereadores Manuel Marques Sena e Manuel Ferreira da Costa.
Nos dois últimos anos da década de 30, o novo administrador do concelho, Rafael Tavares Murjal, recebera vários pagamentos pelo transporte do presidente da câmara e vereadores nas deslocações, em serviço oficial, a Samouco, Montijo e Setúbal.
Tratar-se-ia de motorista profissional ou proprietário de empresa do ramo, numa época em que as actas evidenciam serem de tracção animal os únicos veículos camarários aparentemente existentes.

Rafael Murjal aparece como administrador do concelho no início da década de 40 e, daí em diante, nunca mais o seu nome será citado no transporte de autarcas, embora exerça funções somente cerca de um ano.
No Outono de 1941 o delegado do governo no concelho era já o dr. José Nunes Pereira.
Na sessão de 21 de Junho de 1941 o vereador Manuel Marques Sena pede a exoneração, sem que da acta figure a justificação. É substituído por António Antunes.
Em 8 de Setembro de 1941 o presidente da câmara, Francisco Leite da Cunha, é substituído por Alberto da Cunha e Silva, sócio-gerente da empresa Bacalhau de Portugal, proprietária da primeira seca de bacalhau que seria inaugurada cerca de uma década depois. Continuariam em funções os vereadores Manuel Ferreira da Costa e António Antunes.
Nas actas municipais há a indicação de que a saída do presidente ocorre após eleições, sendo o executivo para o quadriénio 1942/1945 empossado a 5 de Dezembro de 1941.
Além dos vereadores efectivos, acima indicados, os substitutos eram João Baptista Lopes Seixal e Joaquim José de Carvalho Júnior.

O primeiro era comerciante e em várias actas constam autorizações de pagamentos a seu favor, relativas a aquisições de diversos artigos de uso comum na câmara (fava para o gado, sabão, palha para vassouras, velas, etc.). Anteriormente fora eleito para a Junta de Freguesia de Alcochete, à qual renunciara para se tornar vereador substituto.
Embora o presidente Alberto da Cunha e Silva e os vereadores Manuel Ferreira da Costa e António Antunes tivessem sido empossados, em Dezembro de 1941, para o quadriénio 1942/45, dois deles cessarão funções cerca de um ano antes do termo do mandato.
Apenas permaneceria no cargo António Antunes, ascendendo à presidência Joaquim Gomes de Carvalho. O outro vereador é Joaquim José de Carvalho Júnior, suplente no anterior executivo.
Em Janeiro de 1944 entra para a presidência da câmara Joaquim Gomes de Carvalho, em substituição de Alberto da Cunha e Silva, sem que, uma vez mais, constem da acta as razões dessa substituição antecipada.
Em Março de 1944 o vereador Manuel Ferreira da Costa transita para o cargo de vice-presidente da câmara, entrando em sua substituição o vogal suplente Joaquim José de Carvalho Júnior.
A 2 de Junho de 1944 a vereação é constituída pelo presidente Joaquim Gomes de Carvalho, pelo vice-presidente Manuel Ferreira da Costa e pelos vogais António Antunes e Joaquim José de Carvalho Júnior.

Melhoramentos em tempo de guerra
Na sessão de 8 de Setembro de 1941 é aprovado o plano da actividade municipal para os anos seguintes, em cujo capítulo «Melhoramentos» se alude ao abastecimento de água à vila, à construção da rede de esgotos e ao início do contrato de fornecimento de electricidade pela União Eléctrica Portuguesa (antecessora da actual EDP e extinta em 1974).
Devido ao valor elevado dos investimentos, a câmara admite a probabilidade de alargar a pauta dos impostos indirectos se não houvesse possibilidade de suprir de outro modo as despesas sempre crescentes do município, bastante agravadas pela conflagração mundial.
Estava também prevista a negociação de um empréstimo com a Caixa Geral de Depósitos, "para fazer face às despesas com os referidos melhoramentos, em virtude das receitas normais do município não poderem manifestamente comportar o custeamento de obras de tanto valor".
Transcrevo o resto do capítulo, onde surge curiosa referência ao turismo:
"Desde há muito que se impunha a realização de tais obras e nada justifica o seu adiamento por mais tempo, a bem da vila de Alcochete, seu progresso, higiene e limpeza e saúde e conforto dos seus habitantes.
"Alcochete, vila risonha da margem Sul do Tejo, com panoramas de maravilha, como nenhuma outra desta região, pode vir a ser um centro notável de turismo, desde que a dotem de condições indispensáveis ao seu progresso. É preciso evitar que os forasteiros e os visitantes não sintam a má impressão que eles, com razão, agora podem levar.
"Impõe-se também a abertura de novas ruas e o alargamento de algumas já existentes mas, como se não poderá fazer tudo ao mesmo tempo, o que urge é começar por um sector, o mais importante, que é, sem dúvida, o problema das águas, dos esgotos e da luz.
"Ultimados estes projectos, lançar-se-á mão de outros, tanto na vila como na freguesia de Samouco, onde também é necessário cuidar das ruas e seu calcetamento, da urbanização, da higiene, da limpeza e de estradas em condições de bem poderem servir o trânsito".


(continua)

Largo de São João em época próxima daquela a que se refere o relato acima.
Neste tempo os Paços do Concelho ainda se situariam no Largo da República.


2 comentários:

Unknown disse...

Dão-se alvíssaras a quem descobrir o Marafuga na foto que encima este aturado trabalho de Fonseca Bastos.

Anónimo disse...

E como será no séc. XXI ?

Iremos assistir à reunificação do concelho de RIBA TEJO ?