13 fevereiro 2008

Roncadores do poder

Escreveu o Padre António Vieira, no «Sermão de Santo António aos Peixes», que "duas cousas há nos homens, que os costumam fazer roncadores, porque ambas incham: o saber e o poder." Exemplifica com alguém que, tendo muito saber e poder, nunca ninguém ouviu falar disso e, por tanto se calar, acabaria por dar brado.
Os roncadores do saber são irrelevantes no caso que desejo abordar. Discorrer sobre tal espécie daria pano para mangas. Nem serei a pessoa indicada para tal. Habituei-me a fazer-lhes o mesmo que às bananas: aproveito o melhor e deito o invólucro no lixo.
Indigestos são os roncadores do poder, os que tentam iludir misturando o interesse deles com o nosso. Começam por intoxicar a populaça, dando-lhe a sensação de que permitirão a partilha e a participação no poder. O populacho vai no engodo e oferece-lhes de bandeja o que ambicionam. Chegam ao topo e, pouco depois, a plebe descobre que essa influência será nula. Todo o poder permanecerá como possessão individual, inventando-se argumentos especializados, profissionais, complexos e técnicos para continuar a fazer tudo como dantes: a política de factos consumados.
Se lho permitirem, depressa mudarão a máscara de roncadores para tiranos. No primeiro estágio do processo, dispararão sobre quem ouse criticá-los. Arvoram-se em defensores da tribo e de tudo lançam mão, na esperança de uma aclamação como protectores. Posteriormente serão capazes do pior, até de inventar inimigos para desencadear guerras. Porque nada como uma boa guerra para ajudar um chefe a ter mais poder.
Até os roncadores do poder inventam guerras. Descodifique-lhes a verve e perceberá o que pretendem. Observe postura, exibicionismo, ostentação, gestos agressivos, vozearia, tentativas de reforço da confiança dos fracos e de subjugação dos fortes.
A maioria das preocupações ambientais dos roncadores do poder é propaganda e demagogia. A ganância arruína mais a paisagem que o desleixo do cidadão comum.
A forma como se retalha o território condiciona comportamentos humanos. Normalmente isso não se explica às crianças e jovens. Chegados à idade adulta iludem-se com fetiches e habitam em jaulas que nem os curadores dos jardins zoológicos modernos mandam construir para os macacos.
As sociedades urbanas vivem enjauladas, rodeadas de betão e sem espaço para respirar.
Planeia-se a vivência sem dignidade, especula-se, vende-se gato e cobra-se como lebre.
Retalha-se o território com imparável avidez de lucro.
Roncadores do poder reagem vexando o cidadão ao invocarem a sua deseducação ambiental.

2 comentários:

Unknown disse...

Este texto do sr. Bastos está excepcional, tocando em vários aspectos comuns à mais recente filosofia política.
Não estou certo de que o sr. Bastos se ocupe de filosofia política, mas quando qualquer um é capaz de adequar o "eu" à estrutura da realidade, só pode cair na verdade anunciada pelos melhores.
Sr. Bastos, a maior parte das pessoas no poder em Alcochete não percebe este texto. Um ou dois milhafres que percebem vão anotando, sempre na esperança de melhores dias para eles.
Se todos nos calarmos, eu tenho a certeza de que esses 'melhores dias para eles' virão. Se assim fosse, nós seríamos os primeiris a tombar.
O que se passa em Portugal, passa-se em Espanha e Itália. Nos outros países europeus a esquerda encontra-se em crise, embora por isso mesmo mais perigosa como animal feroz cujo instinto lhe diz que está na imimência da morte. Claro que a aragem liberal, conservadora e democrata-cristã na Europa poderá soprar menos ou mesmo deixar de soprar se, na América, McCain perder a favor de H. Clinton ou Obama. Se isto acontecer, na minha análise, a Civilização Ocidental Judaico Cristã não reganhará tempo para a retoma.

Fonseca Bastos disse...

Sr. João Marafuga:
Confesso que me interessam mais a sociologia e a política.
Pouco me importa que a maior parte das pessoas no poder em Alcochete não entenda o texto. Se me ocupasse delas, responderia a um certo vereador. Prometi fazê-lo em rodapé de texto publicado há dias, mas acabei por desistir. Conversando com algumas pessoas, depreendi ser inútil. Dizem-me que o sentimento generalizado é de frustração e já não haver volta a dar-lhes.
Preocupam-me apenas as vítimas: os cidadãos em geral. Que algo terão de fazer se desejam um futuro mais digno. Merecem melhor que o presente, sem dúvida. Mas duvido que o consigam se continuarem adormecidos.