Recuemos quase quatro anos, a Março de 2004.
O então presidente da Câmara Municipal de Alcochete recebe, das mãos do Dr. Elmano da Cruz Alves – personalidade de destaque nas décadas de 50 e 60 – a oferta de seis manuscritos de José Estevam, respeitantes a temas locais.
Os títulos dos originais são «Efemérides Alcochetanas», «Os Ratões em Alcochete», «A Corte em Alcochete», «A Misericórdia de Alcochete», «Figuras de Alcochete I» e «Figuras de Alcochete II».
O Dr. Elmano Alves guardou tais manuscritos durante décadas, ofereceu-os na Primavera de 2004 ao município e recebeu a promessa da sua edição imediata.
Numa informação distribuída à vereação, em princípios de Abril de 2004, o chefe da edilidade afirmava-se grato "ao dr. Elmano Alves pela demonstração de confiança", uma vez que manteve em seu poder os referidos manuscritos durante 30 anos, "aguardando o surgimento de condições ideais para a divulgação dos mesmos".
Como forma de retribuir o gesto – acrescenta a informação do presidente – "manifestamos desde já a nossa intenção em publicar estas obras, transcritas com a maior celeridade possível, enriquecendo assim o vasto património literário sobre Alcochete".
A informação adianta ainda que "era já intenção do actual executivo reeditar as obras conhecidas de José Estevam, outro alcochetano de vulto que, com os seus estudos, contribuiu para um melhor conhecimento sociológico e cultural do nosso concelho".
As obras a reeditar seriam «A Restauração da Igreja Matriz de Alcochete», «O Povo de Alcochete», «Anais de Alcochete» e «Assuntos Ribatejanos».
Não me recordo de, posteriormente aos factos acima relatados, ter lido ou escutado algo sobre o lançamento do livro. E como tenho um arquivo de temas locais correntes, o caso saltou-me agora à vista. Daí algumas perguntas objectivas: o prometido livro foi editado? Se o não foi, porquê? Em que arquivo autárquico estão depositados os manuscritos? Que razões existem para o município atrasar a reedição de obras de José Estevam, quando estão esgotadas há anos e são preciosas para a memória colectiva?
Quem foi José Estevam
José Estevam será, aparentemente, pseudónimo de alguém cujo verdadeiro nome se desconhece, nascido algures em 1877 e falecido, em Lisboa, a 28 de Dezembro de 1960. Escreveu imensos artigos no extinto jornal local «A Voz de Alcochete» e vários livros sobre as gentes de Alcochete, alguns dos quais fruto de significativa investigação histórica, tendo colaborado na revista municipal de Lisboa até muito perto da data do seu falecimento.
Além das obras acima citadas – cujas primeiras edições datam do período 1948/1957 e hoje existem apenas em bibliotecas públicas e privadas – tem editado em Alcochete o livro «Fidalgos e Mareantes - Apontamentos Históricos sobre os Alcochetanos no Oriente", Câmara Municipal de Alcochete (Janeiro de 2001).
João Marafuga – professor, poeta e analista de assuntos locais – garante que José Estevam nasceu em Alcochete, no n.º 3 da actual Rua de O Século – "no primeiro e último andar", segundo o próprio polígrafo.
Era tetraneto de um tal Farelo – cujas façanhas ainda serão reminiscência nas cabeças dos alcochetanos mais idosos – e filho de um homem de apelido Silva.
José Estevam era discreto, tipógrafo de profissão, muito viajado (trabalhou em Moçambique) e com um saber descomunal. Ele e o prof. Leite da Cunha eram rivais no que respeitava à História local. Este, caindo na irascibilidade de vez em quando, dizia que José Estevam era descendente de escravos ao serviço dos Soydos (marquês de Soydos, na época proprietário do solar da Quinta da Praia das Fontes). No entanto, João Marafuga admite que o grande historiador de Alcochete seria descendente de cristãos novos.
Quem é Elmano Alves
O dr. Francisco Elmano da Cruz Alves – apenas conhecido de quem tenha vivido no concelho nas décadas de 50 e 60 – nasceu, por acaso, em Lisboa, a 20 de Outubro de 1929. É sobrinho-neto do Padre Cruz, cursou o seminário durante quatro anos mas licenciou-se em Direito. Casou com uma prima em terceiro grau, Maria do Carmo Cruz, também sobrinha-neta do Padre Cruz, e desse matrimónio há quatro filhos.
Retirou da administração do concelho o dr. Luís Santos Nunes, por incapacidade de gestão, e pôs no seu lugar João Leite da Cunha. Foi vice-presidente e presidente da Câmara Municipal de Alcochete e da Comissão Concelhia da União Nacional (partido político do regime deposto em 1974), respectivamente.
Tal como o eng.º João Maria Ferreira do Amaral e o prof. Francisco Leite da Cunha, o dr. Elmano Alves foi director do jornal «A Voz de Alcochete», editado pela União Nacional e desaparecido no final da década de 60.
Em 1968 o dr. Elmano Alves foi nomeado subsecretário de Estado da Juventude e Desportos e, depois da revolução do 25 de Abril, Marcelo Caetano dedicou-lhe o livro «Depoimento». Esteve exilado no Brasil durante 9 anos, donde regressou em 1984.
Os alcochetanos devem ao dr. Elmano Alves, entre tantas outras coisas, a construção do Pavilhão Gimnodesportivo da vila. Esteve também na génese da Fundação João Gonçalves Júnior, da construção da Escola EB 2,3 El-Rei D. Manuel I, da ampliação do lar da Santa Casa da Misericórdia, da construção do actual Bairro 25 de Abril (originalmente denominado da Caixa de Previdência), da instalação da fábrica do Alumínio Português-Angola e de muito mais.
Conheço-o pessoalmente, reside na freguesia de Canha (Montijo), é viticultor e dele recolhi imensa e preciosa informação documental sobre Alcochete, toda publicada no extinto «Tágides.net», da qual conservo cópias, imagens e alguns originais.
O Dr. Elmano Alves tem vastos arquivo e biblioteca sobre assuntos locais e nacionais.
1 comentário:
O meu respeito pelo Dr. Elamano Alves e pela memória de outras pessoas referidas no meritoso trabalho de Fonseca Bastos é uma veneração imposta pelo meu amor a Alcochete, o que não invalida que um ou outro facto do texto em causa seja questionado.
Deve ser dito, pese embora o espaço de tempo exíguo para fazer rigorosa e objectivamente história, que o Dr. Elmano Alves não «retirou da administração do concelho o Dr. Luís Santos Nunes por incapacidade de gestão...». Esta afirmação é injusta para quem esteve no poder só quatro anos, deixando uma série de projectos bem encaminhados para consecução. Um deles foi, por exemplo, o vulgarmente chamado "Bairro da Caixa".
O Dr. Elmano Alves, tal como dificilmente pode ser negado, tinha ambições políticas cuja fasquia estava muito acima do que lhe poderia proporcionar o Dr. Luís Santos Nunes.
Para lá de ser um homem bom e dos pergaminhos históticos, João Leite da Cunha não tinha mais armas que não fossem as da colaboração com quem poderia ter sido o primeiro ministro de Portugal se não fosse uma revolução cujo preço nos vai ficando cada vez mais caro.
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