A triste ilusão de que é possível salvar o comunismo significa que não se admite o falhanço de uma vida inteira.
Tenho 56 anos. Ora eu vivi a maior parte destes anos acalentando ilusões de esquerda. Estas começaram a ser postas em causa quando percebi intelectualmente que a Idade Média não era tão má como no-la pintam nem a Era Moderna tão boa como nos ensinaram na juventude.
Perceber a fundo o Teocentrismo e o Antropocentrismo e ser consequente obriga a ter de optar, respectivamente, pela direita ou pela esquerda.
No Teocentrismo, o homem assume-se criatura à imagem e semelhança de Deus; no Antropocentrismo há a forte tendência para o endeusamento do homem.
Sem agora recuar às raízes mais profundas do Antropocentrismo, afirmo que este só poderia ter desembocado no iluminismo, endeusamento da razão humana; no positivismo, endeusamento da ciência; no marxismo, endeusamento da matéria porque esta, o ser na filosofia do comunismo, recebe o primado.
Assim sendo, como é possível pensar no resgate de um bom comunismo? Há algum ponto de partida bom e universal no comunismo que o salve?
O comunismo deixá-lo-ia de ser se admitisse que o homem é criado à essência de Deus. Só a admissibilidade deste princípio pode travar os efeitos nefandos do materialismo que precipitariam a humanidade na escravidão mais hedionda.
1 comentário:
O QUE ESTÁ VIVO E O QUE ESTÁ MORTO NO MANIFESTO COMUNISTA?
Marx, profeta da globalização
Rubens Ricupero
EM NEM COM MARX, NEM CONTRA MARX, Norberto Bobbio exclama: "Quantas vezes Marx foi dado por morto". E comenta que isso ocorreu cada vez que alguma de suas previsões não deu certo. Com pretensões a uma visão científica do mundo capaz de descobrir na historia regularidades que permitissem prever eventos futuros, o marxismo conheceu quatro grandes crises, que teriam coincidido com transformações sociais desmentindo previsões feitas por Marx ou a ele atribuídas.
Segundo Bobbio, esses quatro momentos foram: 1º – no início do século, ao não se materializar o colapso final do capitalismo; 2º – no fim da Primeira Guerra, quando a primeira revolução marxista aconteceu no lugar errado, em país de capitalismo tardio onde, de acordo com esse pensamento, ela não deveria ocorrer; 3º – quando feita a revolução o Estado, em vez de preparar sua própria extinção, se esforçou com Stalin de tal modo que se converteu no protótipo do Estado totalitário; 4º – finalmente, após a queda do muro de Berlim, no momento em que não só o capitalismo não se autodestruiu pelas contradições internas, mas, ao contrário, assistiu, triunfante, à desintegração da União Soviética e dos regimes comunistas da Europa Central e Oriental.
Após observar, com certo exagero, que nos momentos decisivos da história contemporânea teria acontecido exatamente o oposto do que Marx havia previsto, Bobbio julga natural que os fiéis se perguntem se ele não teria sido um falso profeta ou se o que escreveu foi ciência de verdade.
Estas reflexões me parecem um bom ponto de partida para indagar, dentro do vasto oceano marxista, o que continua vivo na sua indiscutível obra-prima, o Manifesto Comunista. Não vale a pena perder muito tempo nesse esforço com o óbvio: que parte era natureza conjuntural e destinada a envelhecer. É o caso de passagens inteiras dos capítulos 3 (Literatura Socialista e Comunista) e 4 (Posição dos Comunistas em Relação aos Vários Partidos de Oposição Existentes). Nas digressões sobre a Alemanha, por exemplo, quase se apalpa com os dedos a raiz puramente germânica de um documento de 23 páginas e 1200 palavras, escrito às pressas em alemão por um jovem de 29 anos, à véspera das revoluções da Primavera dos Povos de 1848 e destinado a um grupúsculo de exilados exclusivamente alemães. Nenhum deles, aliás, operário, a maioria alfaiate, profissão, como diz A.J.P. Taylor, dada a longas meditações revolucionárias e com instintiva ojeriza contra os clientes de alta classe ...
Longe de ter morrido, o que só agora começa a nascer no Manifesto, isto é, passa a ser percebido como antevisão da realidade de hoje e de amanhã, é a previsão espantosamente precisa e minuciosa da globalização. Hobsbawm assinalou que Marx não descreve o capitalismo do seu tempo, mas o do nosso e o do futuro, não a internacionalização incipiente de meados do século XIX e sim a das transacionais e da interdependência do próximo milênio.
Todos os temas definidores de uma globalização ainda inacabada se encontram identificados no documento de modo nunca melhor expresso antes ou depois. A unificação dos mercados em escala planetária, por exemplo: "A indústria moderna estabeleceu o mercado-mundo (...) através do mercado-mundo, a burguesia imprimiu caráter cosmopolita à produção e consumo em cada país". A destruição das empresas nacionais e sua substituição pelas transacionais, a internacionalização do processo produtivo: "... puxou-se debaixo dos pés da indústria o solo nacional sobre o qual se apoiava. Todas as tradicionais indústrias nacionais foram ou estão sendo diariamente destruídas. São deslocadas por novas indústrias, cuja a introdução se torna questão de vida ou morte (...) que elaboram matérias-primas trazidas das zonas mais remotas (...) cujos produtos são consumidos não só no país, mas em cada canto do globo". A criação de necessidades induzidas: "Em lugar das velhas necessidades satisfeitas pela produção do país, (...) novas necessidades exigindo produtos de terras e climas distantes". O fim do isolamento e a interdependência: "Em lugar do antigo isolamento e auto-suficiência local e nacional, a interação em todas as direções, a interdependência universal das nações. Tanto na produção material como na intelectual". Nesta última frase está presente até o que Anthony Giddens considera em The consequences of modernity a essência irredutível da globalização: tudo o que é global é relevante para o local, tudo o que é local afeta em alguma medida o global.
Marx, contudo, não se limita a reproduzir com exata perfeição os contornos externos do mundo criado pelo capitalismo global. Ele mergulha nas entranhas do processo para desvendar-lhe o mecanismo e as forças interiores: "A burguesia não pode existir sem constantemente revolucionar os instrumentos de produção e, portanto, as relações de produção e, com elas o total das relações da sociedade". É isso o que vai provocar a instabilidade permanente: "A constante revolução da produção, a ininterrupta perturbação de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação perpétuas distinguem a época burguesa de todas as anteriores. Todas as relações fixas e congeladas (...) são varridas para longe, todas as recém-formadas ficam antiquadas antes de poderem se ossificar. Tudo que é sólido derrete no ar, tudo que é santo é profanado ...".
Onde encontrar evocação do mal-estar, angústia e insegurança criadas pela globalização comparável a esse texto, que Edmund Wilson definiu como "denso com a força comprimida de explosivos de alta potência?"
É por essas extraordinárias qualidades de intuição e poder expressivo que o Manifesto foi muito além do documento político de circunstância e se transformou num dos textos seminais e definitivos de todos os tempos. No artigo que escreveu para The New York Times Book Review, o professor Steven Marcus, de Columbia, vê no Manifesto o momento "de acesso da consciência social e intelectual a um novo patamar de abrangência". Parte integral, como obra de Darwin e Freud, da sensibilidade moderna, ele é inseparável da maneira como nós e nossos contemporâneos percebemos a realidade criada pela Revolução Industrial e nos situamos perante ela.
Isso ajuda também a compreender as insuficiências do documento, as partes envelhecidas ou as previsões que não se realizaram. Ao se converterem em elemento constitutivo central da consciência e sensibilidade com que captamos a realidade, as análises do Manifesto deixam de ser a luneta com que se olha desde fora para essa realidade e passam a ser um dos instrumentos para a sua transformação. É o que Hegel havia indicado há muito tempo e Giddens voltou a pôr de moda, ao chamar a atenção para a função reflexiva das ciências sociais, as quais não se limitam a dissecar o objeto mas acabam por modificá-lo. Foi esse certamente o caso da previsão acerca da pauperização crescente do proletariado, que deveria ter conduzido à crise final do sistema. A frase no túmulo de Marx, segundo a qual os filósofos interpretaram o mundo mas agora era preciso transformá-lo, mereceria um complemento. Na verdade, ao interpretarem o mundo, os filósofos já começaram a transformá-lo. O exemplo mais contundente desse potencial das idéias foi o destino do próprio Manifesto, que pecou não tanto por erro de profetizar o futuro mas por subestimar seu potencial de desencadear ações capazes de alterar o curso lógico da profecia.
Aliás, mesmo a censura relativa à inevitabilidade da pauperização, a principal que se faz ao Manifesto, precisa ser qualificada. Deve-se reconhecer, com efeito, que não só a luta social organizada a partir do documento contribui decisivamente para atenuar as tendências concentracionárias inerentes ao capitalismo como essas tendências voltaram a recrudescer, hoje, dando nova atualidade ao debate sobre a pauperização. Em recente ensaio publicado em Foreign Policy, Nancy Birdsall, norte-americana e vice-presidente do BID, começa por dizer: "Exatamente 150 anos após a publicação do Manifesto Comunista, a desigualdade ocupa espaço amplo na agenda global. Nos EUA, a renda dos 20% das famílias mais pobres declinou continuadamente desde o início dos 1970. Enquanto isso, a renda dos 20% mais ricos aumentou em 15% e a do 1% no topo em mais de 100% (...). No nível global, a relação entre a renda média do país mais rico do mundo em comparação ao mais pobre, que era de 9 para l no fim do século XIX, cresceu para, ao menos, 60 para 1 hoje em dia. (...) Talvez pela primeira vez na história da nação (os EUA), as conquistas educacionais podem estar reforçando em lugar de compensando a desigualdade de renda: a educação superior tornou-se requisito de sucesso econômico, mas, como o acesso a ela depende da renda familiar, os pobres se encontram em clara desvantagem". Como se vê, na idade das fusões gigantescas de empresas, da destruição maciça de empregos, da explosão da desigualdade no interior dos países e entre eles, da crise do sistema do assalariato, o velho debate está longe de esgotado, dando razão ao que dizia Joseph Schumpeter, insuspeito de simpatias marxistas: "É preciso sempre voltar a Marx".
Talvez o que mais mereça viver no Manifesto é seu sopro utópico, não no sentido da sociedade perfeita mas no da crença numa sociedade menos imperfeita e injusta. Nesse sentido, nada melhor para concluir este comentário do que a resposta de Emmanuel Levinas, em entrevista a La Stampa, em 1992 ou 93, à pergunta sobre se as democracias teriam vencido: "A mim parece que as democracias perderam e muito. Não obstante todos os excessos e horrores, o comunismo sempre representa uma espera. Espera de poder retificar os males feitos aos débeis, espera de uma ordem social mais justa. Não digo que os comunistas tivessem a solução pronta, nem que a estivessem preparando. Ao contrário. Mas havia a idéia de que a história tivesse um sentido qualquer. Que viver não fosse insensato. É uma idéia que os ocidentais têm desde o Setecentos e Marx enraizou no pensamento do século XX. Não creio que tê-la perdido para sempre seja uma grande conquista espiritual. Até ontem, sabíamos aonde ia a história e que valor dar ao tempo. Vagamos agora perdidos, perguntando-nos a cada instante: 'Que horas são?' Fatalisticamente, um pouco como costumam indagar os russos. Que horas são? Ninguém o sabe mais."
Rubens Ricupero é secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), professor de Relações Internacionais da Universidade de Brasília e de História das Relações Diplomáticas do Instituto Rio Branco, DF.
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