22 setembro 2008
Subsídio para a história das secas do bacalhau
A história das secas do bacalhau em Alcochete principia no ano de 1941, mas somente no início de 1951 seria inaugurada a primeira.
Volvidos quase 58 anos as secas estão à beira da demolição, continuando por fazer a história dessa indústria que trouxe desenvolvimento significativo ao concelho durante menos de três décadas.
Segundo um recorte do «Diário de Notícias» de 6/8/1966, a decisão de instalar unidades industriais de secagem e salga de bacalhau em Alcochete surgiu em Agosto de 1941, quando a Câmara Municipal deliberou pôr em hasta pública os terrenos baldios que possuía na Praia dos Moinhos, determinando que os mesmos apenas "poderiam ser destinados a fins industriais, comprometendo-se o comprador a iniciar as obras no prazo de um ano, sem o que a arrematação se consideraria nula e de nenhum efeito».
Refere o jornal que, "embora arrostando-se com o parecer desfavorável de alguns técnicos qualificados na matéria, foram montadas nos terrenos que se alienaram instalações de salga e secagem de peixe" e "os resultados obtidos foram de tal modo lisonjeiros que logo a seguir outras grandes empresas do género se estabeleceram em Alcochete, para onde viriam a transferir as suas sedes sociais".
Refere também o jornal que "estes factos tiveram projecção imensa e benéfica na vida do concelho e marcam indubitavelmente o início de uma nova era na sua já secular história".
As secas foram erguidas em terrenos que na época eram baldios municipais e há uma referência interessante na acta da sessão camarária de 1 de Agosto de 1941, elucidativa de que a curta era da primeira industrialização de Alcochete estava a principiar.
Nessa sessão deferem-se requerimentos das primeiras empresas industriais interessadas em adquirir terrenos para a sua instalação e o chefe da edilidade, Francisco Leite da Cunha, dita para a acta uma longa e esclarecedora moção, que permite depreender das suas preocupações sobre o desenvolvimento do concelho.
No primeiro requerimento mencionado, a firma Bacalhau de Portugal, Ld.ª, com sede em Lisboa, pede que seja posta em praça para alienação uma porção de terreno baldio sito nos Moinhos da Praia (actual Praia dos Moinhos), com a área aproximada de 40.000m2, com a base de licitação de $25 por metro quadrado (trata-se do terreno da seca de bacalhau situada atrás do Fórum Cultural).
Perduram, há décadas, dúvidas e boatos acerca deste negócio, porque os baldios normalmente iam a hasta pública a $50/m2, embora este fosse alienado por valor muito inferior.
A fundamentação da venda a preço inferior ao habitual consta da acta e parecem atendíveis as razões, dadas as dificuldades de desenvolvimento do concelho na época, mas entre os mais antigos alcochetanos ainda hoje persistem algumas interrogações.
O caso terá voltado novamente à baila pouco depois da revolução do 25 de Abril. Na página 31 do livro de actas municipais n.º 32, deparei [numa consulta realizada em 2004] com um pedaço de folha de agenda do dia 21 de Fevereiro de 1975 – um período politicamente conturbado – marcando a página que contém o assento da alienação definitiva dos terrenos a $30/m2.
Esse assento foi redigido duas sessões após a recepção das propostas, não pelo secretário da câmara porque a caligrafia é diferente.
Consultei a escritura da venda do terreno dos Moinhos da Praia (hoje Praia dos Moinhos) e nela figura como outorgante, em representação da adquirente, o proprietário e industrial Alberto da Cunha e Silva, residente na vila, que assina na qualidade de sócio-gerente da Bacalhau de Portugal, Ld.ª.
Trata-se de pessoa que detinha um terreno adjacente, confrontando a Sul com aquele que a câmara venderia por 17.576$70 (valor equivalente a 5% do seu orçamento anual na época).
Fica por explicar a divergência de áreas: no requerimento dirigido à câmara, a Bacalhau de Portugal menciona a avaliação de 40.000 metros quadrados, mas na escritura estão indicados 58.589m2. No original da escritura, arquivado na câmara, há vários sublinhados a lápis.
Para adensar o mistério, pouco mais de um mês após a celebração da escritura o gerente da Bacalhau de Portugal é guindado à presidência da câmara, em substituição de Francisco Leite da Cunha. Contudo, o mandato de Alberto da Cunha e Silva seria breve.
Interessante peça política é a moção que o então presidente da câmara, Francisco Leite da Cunha, dita para a acta da sessão em que são apresentadas as propostas de compra de baldios, a qual revela preocupações e perspectivas acerca do desenvolvimento do concelho nessa época.
Transcrevo quase na íntegra a moção aprovada por unanimidade, recordando ser da autoria de alguém que, além de chefe da edilidade durante muitos anos, foi professor do ensino primário e pessoa com uma cultura acima da média para a época:
"Nada menos de três requerimentos, apresentados por outras tantas entidades, são hoje patentes à apreciação da câmara [Não pormenorizo o caso dos outros dois baldios por se referirem a indústrias distintas].
"Os baldios constituem parte integrante do património municipal e, ano a ano, vários requerimentos são submetidos à sanção e despacho da câmara e todos têm obtido deferimento.
"É, porém, fora de toda a dúvida que, quer pela extensão dos terrenos cuja compra se pretende quer pela finalidade a que os destinam os requerentes, claramente indicada nos requerimentos de cada um deles, não deve a câmara cingir-se às normas em uso em casos análogos, visto que a operação a realizar transcende em muito e sob todos os aspectos, tudo quanto até hoje de semelhante se tem efectuado.
"Conclui-se facilmente de um dos requerimentos que a finalidade do requerente não é outra que não seja assegurar o futuro e possivelmente maior incremento da indústria que já explora; da apreciação dos dois outros requerimentos igualmente se verifica que existe o desejo de proceder à montagem e instalação de estabelecimentos industriais, sem qualquer relação ou afinidade com outra indústria já existente e também absolutamente díspares entre si mas de cuja actividade e acção futura são de esperar os mais benéficos e lisonjeiros reflexos na vida do concelho.
"Se cotejarmos o desenvolvimento e progresso dos concelhos da margem Sul do Tejo, vizinhos deste de Alcochete, com o marasmo e estagnação de vida do nosso, impõe-se como verdade axiomática a afirmação de que o próspero desenvolvimento daqueles constitue função do seu desenvolvimento industrial, do qual Alcochete não aproveitou por razões bem sabidas e conhecidas.
"A margem sul do Tejo era a região ideal para a laboração e transformação de todas as matérias primas produzidas pela rica província do Alentejo, desde o momento que entre eles se estabelecesse um sistema rápido, barato e cómodo de comunicações. Uma vez que ele se estabeleceu, era fatal assistir-se à industrialização de toda a margem sul, movimento esse de que Alcochete não beneficiou exactamente porque essas comunicações se não estenderam até cá.
"Nesta conformidade, continuou o concelho de Alcochete quase limitado às suas tradicionais fontes de vida: cultura das terras, a lavra das salinas e o tráfego do rio.
"Destas três fontes de vida, o desenvolvimento da última constitue função do grande florescimento ou decadência das duas primeiras, tão intimamente lhes está subordinada.
"Ora, não é segredo para ninguém o quanto, mercê de circunstâncias de ordem vária, a agricultura tem decaído no concelho. A apreciação das determinantes deste fenómeno alarmante, e de todas as suas graves consequências, levar-nos-ia muito longe; basta, por isso, que digamos que os consideramos como fatais e irremediáveis, exactamente porque os conhecemos e temos estudado.
"Resta, pois, considerarmos como factor económico de valor a lavra das salinas.
"É todavia justo que vejamos que não podemos julgar como elemento de influência num ulterior progresso e desenvolvimento concelhio, a sua exploração.
"Não nos resta dúvida alguma que qualquer modificação no ritmo da mesma se viria projectar perigosamente na já precária vida económica do concelho, mas isso constituiria apenas o agravamento daquilo que está já mau e que passaria então a estar péssimo.
"Sendo assim, parece-nos ser de justiça considerar tal género de actividade unicamente factor imprescindível de estabilidade económica concelhia, o que já não é pouco, isto a menos que o sal não venha a constituir num futuro próximo factor de prosperidade, pelo seu aproveitamento como matéria prima, à semelhança do que já acontece noutros pontos. Esboçada assim a traços largos a situação das três principais fontes de vida do concelho e não podendo tomar em consideração qualquer das outras actividades, que nele se exercem pelo carácter transitório e aleatório que a todos informa – excepção feita talvez da construção naval, que se está tornando progressiva e florescente – a câmara reconhece como sendo uma necessidade vital o estabelecimento de indústrias na área do concelho".
Segundo testemunho do falecido Dr. Manuel Simões Arrôs – confirmado por abundante documentação bibliográfica existente, entre outros locais, no Ministério da Agricultura e Pescas – apenas em 1951 começariam a instalar-se as fábricas de secagem e de preparação de bacalhau da Terra Nova.
Primeiro a Bacalhau de Portugal (inaugurada a 25 de Janeiro de 1951), a seguir a Pescal e, por fim, a Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau (SNAB).
Alcochete chegará a ser, na década e meia seguinte, o maior centro nacional de secagem e preparação de bacalhau.
Em épocas determinadas, no cais da vila e ao largo havia vários bacalhoeiros fundeados. Descarregavam o produto da safra nas águas canadianas e carregavam sal para a safra seguinte.
Os maiores lugres não podiam vir até cá, sendo a carga e descarga assegurada por fragatas. Hoje restam as ruínas dessa indústria que, por alegada escassez de mão-de-obra local, chegou a trazer gente das regiões de Aveiro e de Viana do Castelo. Alguma ainda aqui reside e seria precioso recolher memórias e documentos.
Vale ainda a pena recordar que a instalação dos primeiros túneis de secagem artificial de bacalhau, nos moldes considerados como de sistema convencional, ocorreu em 1951 na Empresa Comercial e Industrial de Pesca – Pescal, Ldª, em Alcochete, a que rapidamente se juntaram os da Empresa de Pesca de Aveiro e da Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, Ldª (SNAB), esta primeiro em Alcochete e depois em Lavadores, no Porto [consultar fonte documental aqui].
Estamos em 2008 e o destino das ruínas da primeira revolução industrial no concelho está traçado: serão arrasadas e em seu lugar surgirão empreendimentos turísticos.
A primeira a desaparecer será a das imagens deste texto, situada atrás do Fórum Cultural. A autorização está concedida e a quem tiver dúvidas recomendo a consulta deste documento do passado mês de Maio.
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8 comentários:
Eu creio bem que a secagem do bacalhau em Alcochete começou muito antes de 1951, uma vez que a minha mãe (murtoseira) veio trabalhar para uma das secas. Cá conheceu o meu pai (alcochetano) com quem namorou e casou. Eu, o mais velho dos filhos, nasci em 1950.
Eram raras as alcochetanas que trabalhavam nas secas porque entre os homens havia a ideia de que ter as mulheres e as filhas a trabalhar arrastava desonra para cima deles. Era como se eles não tivessem capacidade para sustentar a família.
As secas do bacalhau em Alcochete foram uma lufada de ar fresco a trezentos e sessenta graus.
Em Alcochete, os casamentos foram endógenos durante séculos. Com a chegada das murtoseiras, gafanhotas, ratinhas, etc., muitos alcochetanos casaram com elas.
Raramente o homem ia para a terra da mulher. Esta é que ficava.
Não estava para dizer esta, mas lá vai: os homens alcochetanos que casavam com mulheres do norte (as que trabalhavam nas secas) eram postos um bocado à margem pelos próprios pais e irmãos.
Não tenho bases para negar que possa ter havido uma seca em Alcochete antes de 1951.
No entanto, até hoje ouvi falar de apenas três secas e se a escritura da venda do terreno da primeira é de 1941 (consultei o documento), tendo sido oficialmente inaugurada em Janeiro de 1951 (demonstrado por recorte de jornal em meu poder), dificilmente terá havido outra(s).
Se alguém estiver em condições de aprofundar o estudo, principalmente nos arquivos da Direcção-Geral das Pescas (onde está toda a documentação relacionada com bacalhau e secas de Alcochete, com excepção do arquivo de SNAB que, lamentavelmente, desapareceu na quase totalidade) talvez se possa explicar o caso dos seus pais e de muitos outros.
Se foi namoro breve, sua mãe pode ter chegado em 1947/1948, casado em 49 e ter o primeiro filho em 50.
Presumivelmente, sua mãe terá sido uma das primeiras naturais da Murtosa a chegar às secas de Alcochete...
É por essas e outras causas que considero muitíssimo relevante a pesquisa e publicação tudo o que for possível localizar acerca das secas de Alcochete. E não só!
Os recados que se seguem não são dirigidos a si mas a alguns patetas que disfarçam a incapacidade pavoneando-se pelas esquinas.
A identidade cultural de um povo depende do conhecimento das tradições, dos usos, dos costumes e das origens dos antepassados.
Desconhecer as raízes é ignorar a memória do povo que somos.
Como poderão as gerações actuais e futuras preservar legados e heranças patrimoniais e culturais se pouco ou nada sabem do passado?
Só mantendo viva a chama da alcochetanidade será possível transmitir aos vindouros a ancestralidade legada.
Não é lícito malbaratar e destruir referências invocando apenas o progresso, porque povo sem memória não existe nem tem futuro.
Na continuidade do que o sr. Bastos diz na segunda metade do seu texto, acrescento que se fizermos do passado uma tábua rasa, perde-se o termo de comparação com o presente. Então este compara-se consigo próprio até ao vazio total. Este vai ser o fado de muita gente.
NOTA: De facto, os meus pais casaram em 1949.
Dou os parabéns pelo bom trabalho de recolha de informação.
Paulo Benito
Obrigada a quem me falou neste blog. Escreve aqui e sabe a quem me refiro.
Não resisti a comentar este assunto porque sempre, nos meus passeios pelo rio, me pergunto o seguinte: Porque será que este belo espaço da seca do bacalhau, não terá sido mantido e aproveitado para fazer, por ex. o Fórum, um Museu, enfim, algo que nos ajudasse a ver e a conhecer a a história dum meio que ajudou a manter a vida das famílias desta terra?
Deve ser por isso que o Fórum construído ali ao lado está tão triste, tão sombrio... queria brilhar mais, ao lado do nosso belo rio, certamente...
Mas quem sou eu para ter estes pensamentos? Não sou alcochetana, mas já amo esta terra e é por isso que, independentemente de política ou religião, ou ... ou ... quis deixar aqui o meu humilde parecer.
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