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20 janeiro 2009

Grande abraço a Isabel M!




Envio para Londres um abraço a Isabel M, bisneta de António Rodrigues Regatão, a qual, graças a este texto, pôde conhecer uma imagem do seu antepassado.

Repare-se no comentário por ela introduzido no texto.
Já agora, Isabel, especialmente para si aqui tem uma página com tudo o que neste blogue se escreveu acerca do seu bisavô.

E o que ainda não se escrevera, por falta de oportunidade, fica registado em seguida, com duas imagens pouco conhecidas: ao alto, grupo de fundadores do Aposento do Barrete Verde, onde figura seu bisavô. Um pouco mais abaixo, neste texto, há ainda um documento histórico da fundação do Aposento.

Há cerca de sete anos, quando originalmente escrevi e publiquei este texto, registei nele que o filho de António Rodrigues Regatão - reformado e então com quase 80 anos - lamentava que Alcochete se tivesse esquecido do pai, oficialmente tido como o ideólogo do Aposento do Barrete Verde.
Nunca houve justificação para tal e presume-se que a razão seja apenas uma: não nasceu cá!
O impulsionador do Aposento do Barrete Verde foi o jornalista José André dos Santos e na época (início da década de 40 do século passado) surgiram várias ideias acerca do nome a atribuir-lhe, tais como Casa, Pousada ou Albergue.
Chega a ser impressa uma circular, datada de 22 de Agosto de 1944, em que surge estampada a denominação Pousada do Barrete Verde. Todavia, quando é distribuída à população tem sobreposta à palavra Pousada, através de um carimbo, a designação Aposento (ver imagem acima ampliada).
Tudo indica que António Rodrigues Regatão foi quem atribuiu a denominação final ao Aposento e terá também contribuído para a redacção dos seus princípios básicos e do projecto inicial de estatutos.
O Aposento do Barrete Verde nasceu a 20 de Agosto de 1944 e são seus fundadores oficiais Álvaro José da Costa, António Rodrigues Regatão, António Tomé, Augusto Atalaia, Augusto Ferreira da Costa, Augusto Ferreira Gonçalves de Oliveira, Augusto Ferreira Saloio, Carlos Pedro de Oliveira, Estêvão João Pio Nunes, João Baptista Lopes Seixal, Joaquim José de Carvalho, Joaquim Tomás da Costa Godinho, José de Oliveira, Manuel Ferreira Perinhas, Dr. Manuel Simões Arrôs e Virgílio Jorge Saraiva.
António Rodrigues Regatão, falecido em 1966 em Alcochete, era natural de Alandroal, distrito de Évora, onde nasceu em 1890. Foi fundador e presidente do Sindicato dos Ajudantes Técnicos de Farmácia, radicando-se em Alcochete no ano de 1933, para exercer a sua profissão de farmacêutico, adquirindo a Farmácia Gameiro (cujo nome lamentavelmente desapareceu quando, há pouco tempo, o estabelecimento se mudou para a Urbanização do Barris).
António Rodrigues Regatão foi também presidente da Assembleia Geral da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 e tomou parte activa na aquisição do edifício classificado onde se situa a sua sede, na Rua Comendador Estêvão de Oliveira.
Foi criador e ideólogo - na sua forma física, filosófica e programática - do Aposento do Barrete Verde, expressa na circular para angariação de sócios, datada de 22 de Agosto de 1944, publicada mais acima nesta página.
Lutou contra a ditadura do Estado Novo, foi figura destacada e de referência em Alcochete, sendo citado no «Livro Branco do Fascismo». Em consequência das suas opções políticas, foi perseguido na actividade comercial por pessoas influentes e afectas à ditadura.
Em data que não posso precisar – porque o original manuscrito não está datado – a Câmara Municipal recebeu uma proposta para atribuir o seu nome a uma artéria de Alcochete. Nunca obteve resposta. O documento deve constar do arquivo municipal e o seu teor é o seguinte:
"As Festas do Barrete Verde e das Salinas são as festas mais representativas do povo alcochetano, da sua cultura e da sua identidade. Projectaram o nome de Alcochete por todo o país, transpondo fronteiras e proporcionando, todos os anos, a reunião da família alcochetana.
"À personalidade que as criou, José André dos Santos, já foi devida e justamente prestada homenageada. Foi dado o seu nome a uma rua de Alcochete. "Houve alguém que teve a iniciativa, apoiada por um grupo de pessoas que constituíram o núcleo dos sócios fundadores, de criar uma colectividade com a obrigatoriedade de realizar as Festas do Barrete Verde e das Salinas e, consequentemente, de as perpetuar. De estabelecer os princípios que a devia corporizar: trabalhar por Alcochete; fazer a sua propaganda; pugnar pelo seu progressivo desenvolvimento, tornar conhecidas todas as suas belezas naturais; criar um lar regional representativo das tradições, do labor, das tendências e aspirações da família alcochetana e que sirva de casa de recepção de visitantes. "Foi esta mesma pessoa que materializou estes princípios, organizando e dando vida à mais representativa e importante colectividade alcochetana, o Aposento do Barrete Verde. "Este alguém foi António Rodrigues Regatão. "Por analogia com a homenagem a José André dos Santos, e dentro dos mesmos princípios, propomos que seja atribuído o nome de António Rodrigues Regatão a uma rua de Alcochete. Porque nos parece de elementar justiça e gratidão para com a memória de quem fez algo de concreto por Alcochete. Era incontestavelmente seu grande amigo e alcochetano de coração".
Tendo dado pouco ou nada a Alcochete, há quem tenha o seu nome inscrito numa artéria. António Rodrigues Regatão deu algo bem visível, mas cerca de 43 anos após a sua morte ainda não lhe foi feita justiça.

27 outubro 2008

Municipalismo de outrora (1): autarcas, projectos e a guerra


Com permissão do então chefe da edilidade e a paciente cooperação de duas funcionárias do arquivo municipal, em princípios de 2004 tive a oportunidade de consultar antigas actas da Câmara Municipal de Alcochete.
Convergindo na Câmara Municipal iniciativas e interesses de pessoas, de corporações e de instituições, as actas sintetizam aspirações e realizações do município e, embora não esclareçam todos os factos, representam importante referência histórica, nunca
estudada nem documentada (salvo raras e limitadas excepções de que existem duas edições disponíveis, para venda no Posto de Turismo e para consulta na Biblioteca Pública de Alcochete).
Contudo, por indisponibilidade de tempo, ao fim de algumas semanas de pesquisa vi-me forçado a interromper o trabalho, que ficaria limitado ao curto período de 1938 a 1945.
Embora escassa para a finalidade então traçada, a abundante informação recolhida parece-me valiosa e decidi partilhá-la agora neste blogue, cuja publicação será feita em capítulos nas próximas semanas.
Oxalá estas pistas despertem curiosidade a alguém que, com mais vagar e conhecimento, se predisponha a pesquisar e estudar a imensa e preciosa documentação municipal, rica em pormenores da nossa história contemporânea.
Cabe aqui uma palavra de agradecimento aos ex-autarcas dr. Elmano Alves e sr. Miguel Boieiro que, em épocas distintas e separadas por cerca de duas décadas, foram vice-presidente e presidente da câmara, respectivamente.
Estou igualmente grato ao dr. João Marafuga, alcochetano e profundo conhecedor do passado do concelho. Ao primeiro porque estimulou a pesquisa, ao segundo e terceiro pelo paciente trabalho de revisão e de clarificação de detalhes.

Preâmbulo
Até à revolução de 1974 os órgãos municipais eram a câmara e o conselho municipal, o primeiro na esfera executiva e o segundo na deliberativa.
Previamente à Revolução dos Cravos os municípios gozavam de limitada autonomia administrativa e as suas competências e atribuições eram definidas pela administração central, existia em todos um delegado do governo e os autarcas submetidos a sufrágio eram membros ou apoiantes do único grupo político reconhecido (União Nacional).
Antes da reorganização administrativa decorrente da Constituição de 1976, Alcochete era "concelho rural de 3.ª categoria" e a sua Câmara Municipal tinha uma estrutura mínima e limitados meios financeiros.
Consequentemente, durante décadas os autarcas usaram amigos e correligionários sentados em Lisboa para influenciar decisões políticas e concretizar aspirações, sendo notórios o desenvolvimento económico e os melhoramentos planeados ou conquistados quando, ocasionalmente, abastados proprietários do concelho ascendiam a destacadas posições na capital ou eram chamados a exercer funções no Estado.
Documentos e testemunhos evidenciam que, nomeadamente entre os anos 30 e 60 do século passado, habilmente os autarcas serviram-se de relações familiares, de amizades, de conhecimentos e de conivências políticas para iniciar ou concluir infra-estruturas fundamentais.
As actas do município fornecem pistas sobre esse tráfico de influências, cujos reflexos se avaliam também em jornais locais e nacionais da época.
Convém ainda recordar que, na maior parte do curto período estudado, pontificou na redacção de «O Século» o jornalista alcochetano José André dos Santos ('pai' das Festas do Barrete Verde e das Salinas), que tinha amigos no concorrente «Diário de Notícias».
Foram de tal modo positivos os resultados de influências movidas em dois órgãos da Imprensa de expansão nacional que ainda hoje, em Alcochete e Samouco, há artérias com os nomes desses jornais.
Parece-me curioso referir também que, há cerca de seis décadas, os vereadores de Alcochete não desempenhavam funções a tempo inteiro. Todos – incluindo presidente e vice-presidente da câmara – tinham uma ocupação profissional.
Daí que o horário das reuniões públicas da edilidade variasse, consoante as disponibilidades da vereação ou até da época do ano.
Depois de, nos anos de 1938 e 1939, se terem realizado, semanalmente, a partir das 15h00, no início da década de 40 decorriam aos sábados, depois das 21h00.
Em meados de Outubro de 1940 decide-se que, durante o Inverno, as reuniões da câmara seriam antecipadas para as 20h00, mantendo-se ao sábado.

No princípio de 1941 as sessões ordinárias passam a ser quinzenais, pelo que daí em diante jornaleiros, operários e assalariados camarários receberiam o ordenado quinzenalmente, em vez de semanalmente como até então.
Em 19 de Junho de 1941 a vereação decide que, a partir de 1 de Agosto seguinte, as sessões da câmara passariam a realizar-se às sextas-feiras, continuando a periodicidade quinzenal.
A sequência do trabalho das sessões manteve-se inalterada durante os sete anos estudados: aprovava-se a acta da reunião anterior, lia-se a correspondência recebida, verificavam-se as contas, aprovavam-se pagamentos de serviços e de fornecimentos e entrava-se na discussão da ordem do dia ou da noite, normalmente preenchida com o despacho de requerimentos ou apreciação e votação de propostas do presidente e dos vereadores. As actas eram manuscritas em livro próprio, pelo secretário da câmara.

Autarca vem, autarca vai
Como acima referi, na época Alcochete estava classificado como concelho rural de 3.ª categoria e o mandato dos autarcas não era exercido a tempo inteiro, sendo, frequentemente, condicionado por vicissitudes da actividade profissional dos titulares.
Em Fevereiro de 1939, por exemplo, o vereador Mateus Gonçalves Gomes renuncia ao mandato devido a desentendimento com o dono da farmácia de que era empregado (a Gameiro, na época pertencente a António Rodrigues Regatão, fundador e ideólogo do Aposento do Barrete Verde), sendo forçado a ausentar-se para ganhar a vida por ser "impossível exercer a profissão no concelho".
Mateus Gomes estaria em funções por curto período – segundo se depreende de elogio do presidente, ditado para a acta da sessão em que ocorre a renúncia – sendo substituído na reunião seguinte por Augusto Lopes Condelipes. Mas, por razões de saúde, também o mandato deste duraria somente cinco meses, rendendo-o António Tavares da Silva Falcão Sobrinho.
Em Setembro de 1939 ocorre nova mudança na vereação, na qual se manterá apenas o presidente, Francisco Leite da Cunha, professor do ensino primário na escola masculina da vila (ver imagem acima, da colecção particular do dr. João Marafuga e, presumivelmente, obtida uma década depois daquela a que me refiro. A fotografia foi obtida à porta da Escola Conde de Ferreira, no Rossio de Alcochete, hoje Largo Barão de Samora Correia).
Francisco Leite da Cunha era descendente do Marquês de Soydos, proprietário da Quinta da Praia das Fontes, estando então a seu cargo na câmara os pelouros de finanças, secretaria, educação, estética e urbanização.
Ignoram-se os motivos da substituição da maioria dos vereadores, por serem omissos nas actas.
O novo vereador Manuel Marques Sena fica incumbido da iluminação e da água e Manuel Ferreira da Costa trata da limpeza pública, matadouro, cemitérios, mercado e obras.
Este estaria ligado à empresa proprietária do vapor «Alcochete» – que estabelecia a ligação fluvial com Lisboa e era popularmente conhecido como "o Menino" – pois no final desse mês abster-se-ia de votar mais um pedido de subsídio apresentado por essa sociedade, a Empresa Portuguesa de Navegação Fluvial.
No início dos anos 40 os órgãos autárquicos de Alcochete tinham a seguinte composição: administrador do concelho, Rafael Tavares Murjal; presidente da câmara, Francisco José Pereira Coutinho Facco Leite da Cunha (mais conhecido por Francisco Leite da Cunha e acima citado); presidente substituto, José Nunes Pereira; vereadores Manuel Marques Sena e Manuel Ferreira da Costa.
Nos dois últimos anos da década de 30, o novo administrador do concelho, Rafael Tavares Murjal, recebera vários pagamentos pelo transporte do presidente da câmara e vereadores nas deslocações, em serviço oficial, a Samouco, Montijo e Setúbal.
Tratar-se-ia de motorista profissional ou proprietário de empresa do ramo, numa época em que as actas evidenciam serem de tracção animal os únicos veículos camarários aparentemente existentes.

Rafael Murjal aparece como administrador do concelho no início da década de 40 e, daí em diante, nunca mais o seu nome será citado no transporte de autarcas, embora exerça funções somente cerca de um ano.
No Outono de 1941 o delegado do governo no concelho era já o dr. José Nunes Pereira.
Na sessão de 21 de Junho de 1941 o vereador Manuel Marques Sena pede a exoneração, sem que da acta figure a justificação. É substituído por António Antunes.
Em 8 de Setembro de 1941 o presidente da câmara, Francisco Leite da Cunha, é substituído por Alberto da Cunha e Silva, sócio-gerente da empresa Bacalhau de Portugal, proprietária da primeira seca de bacalhau que seria inaugurada cerca de uma década depois. Continuariam em funções os vereadores Manuel Ferreira da Costa e António Antunes.
Nas actas municipais há a indicação de que a saída do presidente ocorre após eleições, sendo o executivo para o quadriénio 1942/1945 empossado a 5 de Dezembro de 1941.
Além dos vereadores efectivos, acima indicados, os substitutos eram João Baptista Lopes Seixal e Joaquim José de Carvalho Júnior.

O primeiro era comerciante e em várias actas constam autorizações de pagamentos a seu favor, relativas a aquisições de diversos artigos de uso comum na câmara (fava para o gado, sabão, palha para vassouras, velas, etc.). Anteriormente fora eleito para a Junta de Freguesia de Alcochete, à qual renunciara para se tornar vereador substituto.
Embora o presidente Alberto da Cunha e Silva e os vereadores Manuel Ferreira da Costa e António Antunes tivessem sido empossados, em Dezembro de 1941, para o quadriénio 1942/45, dois deles cessarão funções cerca de um ano antes do termo do mandato.
Apenas permaneceria no cargo António Antunes, ascendendo à presidência Joaquim Gomes de Carvalho. O outro vereador é Joaquim José de Carvalho Júnior, suplente no anterior executivo.
Em Janeiro de 1944 entra para a presidência da câmara Joaquim Gomes de Carvalho, em substituição de Alberto da Cunha e Silva, sem que, uma vez mais, constem da acta as razões dessa substituição antecipada.
Em Março de 1944 o vereador Manuel Ferreira da Costa transita para o cargo de vice-presidente da câmara, entrando em sua substituição o vogal suplente Joaquim José de Carvalho Júnior.
A 2 de Junho de 1944 a vereação é constituída pelo presidente Joaquim Gomes de Carvalho, pelo vice-presidente Manuel Ferreira da Costa e pelos vogais António Antunes e Joaquim José de Carvalho Júnior.

Melhoramentos em tempo de guerra
Na sessão de 8 de Setembro de 1941 é aprovado o plano da actividade municipal para os anos seguintes, em cujo capítulo «Melhoramentos» se alude ao abastecimento de água à vila, à construção da rede de esgotos e ao início do contrato de fornecimento de electricidade pela União Eléctrica Portuguesa (antecessora da actual EDP e extinta em 1974).
Devido ao valor elevado dos investimentos, a câmara admite a probabilidade de alargar a pauta dos impostos indirectos se não houvesse possibilidade de suprir de outro modo as despesas sempre crescentes do município, bastante agravadas pela conflagração mundial.
Estava também prevista a negociação de um empréstimo com a Caixa Geral de Depósitos, "para fazer face às despesas com os referidos melhoramentos, em virtude das receitas normais do município não poderem manifestamente comportar o custeamento de obras de tanto valor".
Transcrevo o resto do capítulo, onde surge curiosa referência ao turismo:
"Desde há muito que se impunha a realização de tais obras e nada justifica o seu adiamento por mais tempo, a bem da vila de Alcochete, seu progresso, higiene e limpeza e saúde e conforto dos seus habitantes.
"Alcochete, vila risonha da margem Sul do Tejo, com panoramas de maravilha, como nenhuma outra desta região, pode vir a ser um centro notável de turismo, desde que a dotem de condições indispensáveis ao seu progresso. É preciso evitar que os forasteiros e os visitantes não sintam a má impressão que eles, com razão, agora podem levar.
"Impõe-se também a abertura de novas ruas e o alargamento de algumas já existentes mas, como se não poderá fazer tudo ao mesmo tempo, o que urge é começar por um sector, o mais importante, que é, sem dúvida, o problema das águas, dos esgotos e da luz.
"Ultimados estes projectos, lançar-se-á mão de outros, tanto na vila como na freguesia de Samouco, onde também é necessário cuidar das ruas e seu calcetamento, da urbanização, da higiene, da limpeza e de estradas em condições de bem poderem servir o trânsito".


(continua)

Largo de São João em época próxima daquela a que se refere o relato acima.
Neste tempo os Paços do Concelho ainda se situariam no Largo da República.


05 novembro 2008

Municipalismo de outrora (3): saneamento e salubridade

Av. 5 de Outubro (Alcochete) em época próxima daquela a que se refere texto. É notória a inexistência de asfalto ou empedrado.


Até meados do séc. XX o Largo Alm. Gago Coutinho não teve jardim. Este recanto é aquele em que se situam o jardim, o coreto municipal e o parque infantil.



O primeiro texto desta sequência está aqui.

No final da década de 30 e princípios da de 40 do século passado, a limpeza urbana do concelho fazia-se com vassouras de lentisco e uma das despesas regulares da câmara era a aquisição de molhos desse arbusto, em quantidades por vezes próximas do milhar.
Diz-nos o poeta e prosador alcochetano António Rei que "não havia jardins nem passeios nas ruas" e que "os largos eram terreiros onde os rapazes faziam as suas brincadeiras". As imagens acima exemplificam-no.

Em 1938 os salários do pessoal municipal da limpeza totalizavam 420$00 e, muito frequentemente, a câmara tinha de mandar reparar os veículos de apoio, puxados por muares.
Demonstram imagens da época que os jardins eram inexistentes e o miolo urbano tinha escasso arvoredo. Em todo o caso, as actas camarárias evidenciam que, no Verão, a água para regar essas árvores era transportada em cascos de madeira, adquiridos a 60$00 cada.

Em finais de Janeiro de 1939, à Farmácia Gameiro – então pertencente a António Rodrigues Regatão, fundador e ideólogo do Aposento do Barrete Verde – foram pagos 15$70 de medicamentos para o gado empregue na limpeza camarária. Para a alimentação desse gado gastaram-se também 560$ na aquisição de 400 litros de fava e de 400 litros de aveia.
Além de muitas despesas em alimentação, ferragem e tratamento veterinário, os animais também proporcionavam algumas receitas à câmara. Anualmente, em Outubro, o estrume era vendido em hasta pública. Em Abril de 1942 a venda de um macho e de um burro rende 750$00.
A rede de saneamento urbano de Alcochete foi construída no final da década de 40 e antes dela as águas sujas e dejectos da vila depositavam-se em vasilhas (popularmente denominadas "tigela da casa"), recolhidas de noite por veículos da limpeza camarária, puxados por animais e transportando enormes barricas.
No livro «Embrulhos de Vento Que o Tempo Desembrulha» (edição de autor de 2001 e não comercializada), o já citado António Rei publica um curioso texto sobre saneamento nas décadas de 30 e 40, que não resisto a transcrever com a devida vénia:
"Se não havia água canalizada também não havia esgotos domésticos. As necessidades orgânicas eram despejadas num recipiente de barro, chamado 'tigela da casa', colocado à porta, nos dias marcados, para ser esvaziado num tanque assente em rodas e puxado por um muar.
"O empregado camarário que conduzia era quem transportava as 'tigelas da casa' da porta de cada um e esvaziava no tanque, a 'pipa'. Estes dejectos eram despejados na lixeira situada nos terrenos que hoje em dia são o estádio do Grupo Desportivo Alcochetense. À lixeira dava-se o nome de 'depósito'. Também por vezes eram despejados numa rampa, na muralha das Barrocas, construída de emergência para o efeito.
"Na mesma muralha, mais ou menos frente ao largo chamado 'Cova da Moura', havia uma sentina com duas portas (em forma de H) e as necessidades fisiológicas saíam por um buraco no chão, cimentado, directamente para a praia, onde os caranguejos, à espera, lá estavam de olhos para cima. Se o dejecto era rijo, os caranguejos, com os seus garfos (bocas), jantavam; mas se saía diarreia, os que não traziam colher não jantavam".

Salubridade e decência

Na sessão de 20 de Julho de 1940, o vereador Manuel Ferreira da Costa propõe novas regras para a recolha de águas sujas e dejectos na vila. Eis o teor dessa proposta, aprovada por unanimidade:
"Havendo conveniência, a bem da salubridade pública, em modificar o processo até agora usado de recolha de lixo, águas sujas e dejectos;
"Considerando que outras vilas vizinhas já modificaram o sistema, de maneira a tornar mais decentes aqueles serviços, proponho:
"1 - Que a partir de 1 de Agosto sejam adoptados os seguintes horários para os serviços de limpeza pública:
Nos meses de Maio a Outubro – início dos trabalhos de recolha de dejectos às 02h00 e lixo às 5 horas. Início dos trabalhos de recolha de águas sujas às 09h00;
"2 - Que sejam multados em 20$00 todos os moradores desta vila que a partir das 8 horas até às zero horas conservem na via pública os recipientes de dejectos e caixotes do lixo;
"3 - Que sejam multados em igual importância todos os que não apresentarem os referidos recipientes e caixotes, assim como os de águas sujas, devidamente tapados e exteriormente limpos;
"4 - Que nos meses de Novembro a Abril não seja permitido colocar na via pública caixotes de lixo e recipientes de dejectos antes das 23 horas e depois das 08h00, sob pena de 20$00 de multa".
Uma semana após a aprovação desta proposta, a câmara tomava conhecimento de uma reclamação do delegado de saúde do concelho, o conhecido dr. José Grilo Evangelista, pedindo para que fosse chamada a atenção dos zeladores (fiscais) quanto ao cumprimento das posturas e regulamentos municipais sobre saneamento, "não se explicando que estes muito raramente encontrem motivo para levantar autos de transgressão, se bem que no concelho exista posto da GNR. Só há vantagens para o erário municipal de uma fiscalização mais rigorosa" – escrevia o popular clínico que só há poucos anos teve, enfim, direito a nome em artéria da vila.
Dois anos volvidos, no início do Verão de 1942, o estado da limpeza da vila desagrada também ao vereador António Antunes, que apresenta uma proposta, aprovada por unanimidade, chamando uma vez mais a atenção dos fiscais para a limpeza e higiene das ruas da vila, que "deixam muito a desejar".

Maus hábitos

As primeiras sentinas públicas construídas em Alcochete situavam-se no Largo da Cova da Moura – no bairro das Barrocas, como nos diz António Rei – tendo sido abertas em finais de 1938.
Representaram significativo alívio para o povo, nomeadamente o ribeirinho, por serem praticamente inexistentes sanitários domésticos (excepto em casas e solares de gente abastada, que podia construir fossas sépticas).

Um ano depois essas sentinas públicas abriam meia hora antes do nascer do sol e encerravam à uma da madrugada, tendo os munícipes de pagar $50 pelo uso das "cabinas reservadas".
Alguns tinham maus hábitos, verberados por um autarca, conforme consta da acta de uma sessão de Janeiro de 1940: cuspiam "fora dos escarradores e escreviam frases inconvenientes nas portas e paredes".

O vereador Manuel Ferreira da Costa propôs, e foi aprovado por unanimidade, um regulamento a preceito. Simples e com apenas três artigos: o guarda das sentinas tinha o dever de ir às cabinas após cada utilização, puxando o autoclismo se o utente o não fizesse, devendo comprovar se o reservado estava em ordem. Sempre que algum prevaricador fosse identificado seria alvo de participação aos serviços municipais, pagando multa de 50$. Em caso de reincidência pagaria o dobro.
Provavelmente severo, o mesmo vereador propõe, na sessão de 30 de Março, que os funcionários da câmara sejam punidos por terem o hábito de "criticar actos e deliberações camarárias, bem como decisões dos vereadores, demonstrando falta de disciplina e de escrúpulos". Aprovada por unanimidade, a proposta menciona que "sejam rigorosamente castigados os funcionários que criticarem, em público ou não, as deliberações da câmara e respectivos vereadores".

Enfim, a rede de esgotos

A primeira referência camarária ao estudo da rede de esgotos da vila de Alcochete data de Janeiro de 1939, quando a vereação decide elaborar o estudo e levantamento da respectiva planta topográfica.
Ano e meio depois (1 de Junho de 1940), proposta ditada para a acta pelo chefe da edilidade, Francisco Leite da Cunha, determina o seguinte:
"Considerando a necessidade inadiável de proceder tão urgentemente quanto possível às obras de saneamento da vila de Alcochete, condição essencial do seu próspero desenvolvimento futuro;
"Considerando que a Agência Técnica Electrográfica, com sede na Rua Serpa Pinto, n.º 12-2.º Esq.º, em Lisboa, tem elaborado projecto da rede de esgotos da vila de Alcochete" [...] "a câmara aceita o trabalho da agência, que compreende o estudo completo do estabelecimento da rede de esgotos da vila e compromete-se a pagar por esse trabalho 2% do valor total das obras. Ulteriormente a câmara acordará com a mesma agência sobre a forma de efectuar o pagamento".
A proposta é aprovada por unanimidade e representava para a época decisão arriscada, uma vez que a Europa vivia sob o terror da II Grande Guerra.
Tal como referi em artigo precedente, na sessão de 8 de Setembro de 1941 aprova-se o plano da actividade municipal para os anos seguintes, em cujo capítulo «Melhoramentos» se alude ao abastecimento de água à vila e à construção da rede de esgotos, projectos naturalmente interligados.

Devido ao valor elevado dos investimentos, o executivo da câmara admitia alargar a pauta de impostos indirectos se não houvesse possibilidade de suprir de outro modo as despesas sempre crescentes do município, agravadas com a conflagração mundial.
Estava prevista a negociação de um empréstimo com a Caixa Geral de Depósitos, "para fazer face às despesas com os referidos melhoramentos, em virtude das receitas normais do município não poderem manifestamente comportar o custeamento de obras de tanto valor".


Ler artigo anterior

13 janeiro 2009

Nomes injustiçados

Em seu texto um pouco abaixo, Fonseca Bastos faz alusão ao fundador do Aposento do Barrete Verde, o Sr. António Rodrigues Regatão. Este nobre varão - saiba Deus porquê - não tem uma artéria da vila de Alcochete com o seu nome, o que me parece ultrapassar os limites de toda a ingratidão.
Mas não é só António Rodrigues Regatão o grande injustiçado nesta terra de Alcochete.
O Eng.º Ferreira do Amaral (Firestone), o Dr. Elmano Alves (Pavilhão Gimnodesportivo), o Dr. Luís Santos Nunes (Bairro da Caixa), o Sr. Estêvão Nunes (fundador dos Bombeiros Voluntários de Alcochete), os Srs. António da Cruz e Manuel Martins (construtores navais), o Sr. António José Garrancho (empreendedor), etc., são alguns dos grandes vultos, inexplicavelmente esquecidos, que bem serviram Alcochete.
Perante estes factos, não sei como poderei tecer uma escrita branda e não dizer que estamos perante uma total estreiteza de espírito da parte dos responsáveis que têm detido as rédeas da administração local desde o 25 de Abril.
Será possível mudar todo este estado de coisas?
Eu penso que sim se fôssemos capazes de vencer o preconceito, mudando a direcção do voto a favor de forças mais consentâneas com os princípios e valores dos nossos pais e avós.

16 março 2009

Municipalismo de outrora (14): as festas de Verão

As primeiras Festas do Barrete Verde e das Salinas realizaram-se a 7 de Setembro em 1941 e até 1945 aparecem nas actas municipais várias referências às mesmas, verificando-se que sempre tiveram financiamento significativo da autarquia.
No ano de 1944 a câmara concederia 4.000$ de subsídio, importância que à época representava pouco mais de 1% do seu orçamento anual. Hoje equivaleria a cerca do triplo da última verba concedida.
Recorde-se que o Aposento do Barrete Verde seria fundado somente a 20 de Agosto de 1944, com a principal finalidade de organizar essas festividades anuais da vila, cabendo a organização das primeiras festas à Santa Casa da Misericórdia de Alcochete.

Foram imprescindíveis, no entanto, os apoios do município, dos srs. Samuel Lupi dos Santos Jorge e José André dos Santos e a colaboração da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898.
O impulsionador das festas foi o jornalista José André dos Santos (1909-1967)[imagem ao lado], natural de Alcochete, que trabalhava no extinto jornal «O Século».
Aproveita a realização da tradicional corrida de toiros e, com o apoio e divulgação do seu jornal e do «Diário de Notícias», consegue pôr de pé as primeiras festas do Barrete Verde e das Salinas – a única vez em que se denominaram das Salinas e do Barrete Verde, pois do ano seguinte até à actualidade foram sempre as Festas do Barrete Verde e das Salinas.

Em 1943 a Santa Casa da Misericórdia recebe uma herança de Carlos Ferreira Prego, 3.º barão de Samora Correia (cujo busto está no antigo Rossio da vila, imagem abaixo), desinteressando-se da organização das festas, passando essa responsabilidade para a Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898, com o apoio da Câmara Municipal.
Perante as dificuldades em encontrar uma entidade ou comissão interessada em organizar as festas, em meados de 1943 a Câmara Municipal decide formar uma comissão presidida pelo vereador António Antunes e constituída por Álvaro José da Costa, Virgílio Jorge Saraiva, Augusto Ferreira Saloio, Augusto Atalaia, João Batista Lopes Seixal, José de Oliveira, Augusto Ferreira Gonçalves de Oliveira e Augusto Ferreira da Costa.
Terminadas as festas desse ano, a comissão convida para um almoço pessoas influentes na vila – nomeadamente António Tomé, Estêvão João Pio Nunes, Joaquim José de Carvalho, Dr. Manuel Simões Arrôs, Joaquim Tomás da Costa Godinho, António Rodrigues Regatão, Manuel Ferreira Perinhas e Carlos Pedro de Oliveira – às quais pretende fazer sentir a urgência em constituir uma entidade que assuma a organização das festas.
Desse almoço sai uma comissão composta por Joaquim José de Carvalho, Joaquim Tomás da Costa Godinho, António Rodrigues Regatão, Augusto Ferreira Gonçalves de Oliveira e Álvaro José da Costa, incumbida de constituir a entidade pretendida, que virá a denominar-se Aposento do Barrete Verde e será fundada a 20 de Agosto de 1944.

(continua)


N.R. - Contribuíram para este texto os srs. Miguel Boieiro e João Marafuga. O excerto respeitante às Festas do Barrete Verde e das Salinas faz parte da história do Aposento do Barrete Verde, editada na década de 80.

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22 julho 2006

A ignomínia

Lê-se no Jornal de Alcochete, 19 de Julho de 2006, pág. 3, sob o título "Autarquia aprova toponímia para novos loteamentos": «Constatado o facto de que os novos loteamentos de Alcochete já habitados se situam em ruas sem nome, o executivo da Câmara Municipal aprovou a toponímia para algumas destas zonas do concelho. Assim sendo, na Quebrada Norte e Sul, os nomes das ruas foram inspirados na temática dos frutos silvestres e tropicais, sendo que vão surgir placas com "Rua dos Abacates" ou "Rua dos Cajus". Entre a lista podem ser encontrados outros frutos como maracujás, goiabas, tâmaras, abacaxis, amoras, groselhas, morangos, framboesas, mirtilos, damascos ou cerejas. Na zona do Batel, a inspiração foi outra. Os arbustos aromáticos dão o mote e irão surgir alfazemas, jasmins, alecrins e madressilvas como nomes de rua. No Valbom, para que se dê continuidade à Rua das Gaivotas, vai surgir a Rua dos Alcatrazes. [...]. No Alto do Castelo vão surgir as ruas das Tipuanas, das Olaias e dos Freixos. Limoeiros e laranjeiras vão dar identidade a ruas da Várzea...».
Estamos perante decisões que decorrem de uma verdadeira patologia individual ou de grupo porque são efeito do mais rasteiro entendimento da mera visão imanente do homem e do mundo.
De facto, a toponímia é aproveitada para prestar culto ao deus ambiente.
O mais aflitivo será que os comunistas desta terra de Alcochete não têm a menor consciencialização do que eu discorro nem nunca fizeram a menor reflexão sobre o tema, considerando eles, quase de direito natural, que está bem o que mal fazem.
Por outro lado, os comunistas não podem proceder de outra maneira. Se outro fosse o modus faciendi deles, deixariam de ser comunistas.
Assim, vultos incontornáveis da nossa comunidade como José Estêvão, António Regatão, Mestre António da Cruz, Mestre Manuel Martins, Luís Santos Nunes, Ferreira do Amaral, Elmano Alves, Estêvão Nunes, Leonor Matos, Manuel Simões Arrôs, etc., são preteridos a favor de abacates, maracujás, alfazemas, alcatrazes, tipuanas, etc., porque evocam valores pertencentes a uma mundividência cristã, o que não contribui para o triunfo da causa comunista, razão por que têm de ser varridos da memória colectiva!

09 janeiro 2009

Municipalismo de outrora (8): saúde dos pobres

Até às obras de 1972, quando foi acrescentado o piso superior, era este o traçado original do edifício do Lar Barão de Samora Correia da Santa Casa da Misericórdia de Alcochete. Antes do lar de idosos neste edifício existiu uma fábrica de fósforos.


Interrompida há semanas por razões de oportunidade, retomo agora a publicação de artigos baseados numa consulta a actas municipais com mais de seis décadas. O primeiro artigo está aqui.

Nos sete anos anos abrangidos por esta pesquisa (1938-45), a câmara suportava elevadas despesas com o transporte, tratamento e internamento hospitalar de doentes pobres, cujas profissões mais frequentemente citadas eram jornaleiro (trabalho à jorna) e doméstica.
Como não havia ainda corpo de bombeiros (fundado em 1948), os doentes eram transportados em carros de praça e, por exemplo, na sessão de 19 de Abril de 1939 é autorizado o pagamento de 37$60 pelo transporte de um enfermo ao Hospital de São José.

Em quase todas as sessões camarárias era aprovada a emissão de guias de hospitalização gratuita a favor de munícipes sem recursos e, em Março de 1940, realiza-se um pagamento de 617$50 à Empresa Portuguesa de Navegação Fluvial, respeitante a passes no vapor «Alcochete» para doentes pobres em tratamento no hospital de Lisboa.
A câmara pagava também à Santa Casa da Misericórdia de Alcochete um pequeno subsídio anual, de valor variável, destinado ao asilo. Em 1938 e 1939 o subsídio era de 600$, mas a partir de 1940 baixaria para 230$, possivelmente devido à II Grande Guerra e aos problemas financeiros dela derivados.
Neste mesmo ano, em duas sessões sucessivas aparece um caso curioso respeitante a um indivíduo de apelido Chatillon. Numa primeira sessão, a vereação nega-lhe guia de hospitalização gratuita por constar na vila ter meios de subsistência e, nomeadamente, bens noutro concelho. Na sessão seguinte a decisão é revogada, com o argumento de que os bens (acções do Banco de Portugal) pertenciam a um irmão.
A miséria grassava no concelho e os doentes indigentes eram em número significativo, pelo que, além de pagar verbas elevadas aos hospitais de Lisboa e em transportes, a câmara dispunha ainda de médico próprio para assegurar a assistência local imediata.
Em Março de 1939 foi saldada uma dívida de 2128$90 ao Hospital Escolar de Lisboa e outra de 5512$34 aos Hospitais Civis.
No Natal de 1939 foram também pagos 57$70 ao Instituto de Oftalmologia Dr. Gama Pinto.

António Rodrigues Regatão

Em acta de 7 de Junho de 1939 surge ainda uma autorização de pagamento de 4$80 a António Rodrigues Regatão – primeiro proprietário da Farmácia Gameiro – pela aquisição de "creolina, sublimado e álcool puro para desinfecção de habitações de pessoas pobres".


(continua)


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29 abril 2009

Municipalismo de outrora (18): água de consumo público

Erguido em 1946, o depósito de água dos Barris
é visível do espaço (imagem Google Earth)

No início da década de 40 do século passado a esmagadora maioria da população de Alcochete ainda se abastecia de água em poços e fontanários existentes em diferentes locais da vila, havendo então em Samouco apenas um poço e uma fonte.

São Francisco dispunha de uma única fonte, cuja reparação custou à câmara 22$00 no mês de Julho de 1938, conforme consta de acta camarária.
Entre 1938 e 1942, os poços públicos mais frequentemente citados nas actas são os dos Barris e do Moyzém, devido às constantes reparações das respectivas bombas manuais. Pontualmente é também citado o poço de São João (então existente no largo com o mesmo nome) mas, ao contrário daqueles, não suscitava despesas significativas.
Em 1944 a bomba do poço dos Barris era já movida a vento, um "aeromotor" semelhante aos ainda existentes em várias propriedades do concelho, engenho que – tal como as noras – tende a desaparecer da paisagem por não haver quem se interesse pela recuperação dos poucos ainda de pé.
Em finais dos anos 30, alguns privilegiados da freguesia de Alcochete usufruíam de uma pequena rede de distribuição domiciliária de água, em artérias compreendidas entre o actual Largo da Feira (o da antiga fábrica de cortiça Orvalho), a Rua Comendador Estêvão de Oliveira (artéria pedonal entre os largos de São João e da Misericórdia) e o Largo Coronel Ramos da Costa (o da farmácia Nunes).
O município investirá na expansão dessa rede até ao final da década de 30, pelo menos, quando começa a planear-se a construção de nova infra-estrutura contemplando toda a área urbana da vila, que na época correspondia, sensivelmente, ao que se convencionou chamar "zona histórica".
Em Julho de 1938 é autorizado o pagamento de 2.000$ a António Gomes Coelho, "pela segunda prestação por conta do levantamento e estudo do projecto de fornecimento de água à vila". Seis meses depois são liquidados mais 3.792$00, pela terceira e última prestação do estudo. Em 1938 a taxa anual de ligação de um ramal de água à rede pública era de 50$00. No Outono de 1939 o aluguer do contador tinha o preço mínimo de 9$00, com direito a 3000 litros de consumo mensal.
Inicialmente, os consumidores de energia eléctrica e de água das redes públicas de Alcochete eram escassos. Mas foram aumentando rapidamente. Em Março de 1939 a câmara adquiria, na Repartição de Finanças, 150 selos fiscais de $10 para os recibos mensais apresentados aos consumidores, mas em Novembro seguinte seriam 400 selos e em Setembro de 1940 necessitava de 600 estampilhas fiscais.
O deflagrar da Segunda Grande Guerra teve impacte negativo em ambos os serviços e várias dezenas de consumidores, incluindo comerciantes, prescindiram dos mesmos, como as actas municipais amplamente registam.
Os pedidos de ligação de ramais e baixadas às redes públicas de água e electricidade eram apresentados em requerimento e individualmente aprovados em sessão da câmara. Por eles fica a saber-se que, em Setembro de 1938 – pouco mais de ano e meio após a sua fundação – o Grupo Desportivo Alcochetense pediria a ligação da sua instalação eléctrica no Largo da República à rede camarária.
Cinco meses depois é autorizada ao rival Imparcial "Foot-Ball" Clube de Alcochete a ligação da água da rede pública aos balneários do campo de jogos (situava-se, sensivelmente, no local onde hoje está a Escola EB 2,3 El-Rei D. Manuel I).
Lê-se também nas actas que o primeiro proprietário da Farmácia Gameiro e co-fundador do Aposento do Barrete Verde — António Rodrigues Regatão — residia na Travessa Luís Alves, da vila de Alcochete. Em Setembro de 1940 pede autorização à câmara para levantar a calçada da via pública, junto ao prédio da sua moradia, a fim de ligar a água da rede pública à habitação.
Outra curiosidade: a Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898 teve luz eléctrica na sua sede a partir de meados de 1941 e água desde Fevereiro de 1943.
Na sessão de 27 de Março de 1942 são aprovados o programa do concurso e o caderno de encargos relativos à obra de abastecimento de água à vila, mandando-se publicar anúncios fixando o concurso público para o dia 20 de Abril seguinte, com a base de licitação de 510.000$. A verba era elevadíssima para a época, bastando recordar ser equivalente a quase dois anos do orçamento corrente da câmara.
Talvez por causa disso, a primeira rede de abastecimento domiciliário de água ficaria concluída apenas em 1946.
O símbolo mais visível desse empreendimento continua a ser o hoje esquecido e abandonado depósito elevado dos Barris (situado na urbanização com a mesma designação), sobre cuja porta de acesso está gravado o ano da sua inauguração.
Entretanto, na sessão de Setembro de 1943 a câmara tomaria conhecimento de que o Estado decidira reforçar a sua comparticipação nessas obras, em mais 36.871$70. Normalmente as redes de água e saneamento eram lançadas ao mesmo tempo e a primeira referência à rede de esgotos da vila de Alcochete data de Janeiro de 1939, quando se decide elaborar o estudo e o levantamento da respectiva planta.

(continua)

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29 novembro 2008


Aposento: embaixador de emoções por Alcochete

Para abordar o tema "A importância do Barrete Verde na divulgação e promoção de Alcochete", José Caninhas – alcochetano e professor do Ensino Secundário, presidente da Direcção do Aposento do Barrete Verde (APB) durante quatro anos, na transição das décadas de 80 e 90 – foi o orador convidado no primeiro encontro informal de cidadania organizado por Paulo Benito no âmbito deste blogue.
Sócio do APB desde os 14 anos, o testemunho do orador centrou-se na história da colectividade e na sua experiência breve como dirigente, durante a qual construiu a visão do ideal alcochetano nessa época, confessando, de passagem, o susto com que, aos 36 anos, encararia o convite para dirigir uma instituição de referência no concelho.
Mas aceitou o desafio e, através do Aposento, pôde conhecer mais profundamente a terra e as pessoas, coligindo traços psicológicos que definem o padrão sociológico do alcochetano médio desse tempo.
Fundado a 20 de Agosto de 1944 (um ano antes do termo da II Grande Guerra), o APB tem invulgar finalidade estatutária principal: organizar, anualmente, as Festas do Barrete Verde e das Salinas, idealizadas pelo jornalista José André dos Santos. A colectividade nascerá na loja do único boticário então existente, António Rodrigues Regatão (da Farmácia Gameiro), fruto de muito cavaqueio político anti-regime também travado no barbeiro.
Estranhamente, porém, a agremiação será fundada de forma elitista: os sócios pagam 7$50 ou 5$00 de quota, mas apenas os primeiros com direito de voto. E quem não usasse gravata não podia aceder às instalações.
As festas surgem como uma dádiva anual de solidariedade à população e só por via delas Alcochete ganhará então realce na Imprensa de expansão nacional. Na vizinha Espanha (nomeadamente em Ciudad Real e Badajoz) alguns aficionados interessam-se também, gerando-se, com o passar dos tempos, reciprocidade de laços e de honrarias entre instituições e dirigentes associativos de ambos os lados da fronteira.
Em pouco mais de duas décadas o APB ganhará lugar de destaque, não somente em tertúlias tauromáquicas luso-espanholas mas também em momentos de grande significado político e económico. Por exemplo, é no Aposento que o eng.º João Maria Ferreira do Amaral (pai do ex-ministro das Obras Públicas e actual presidente da Lusoponte e ao tempo secretário de Estado da Indústria) anunciará a intenção governamental de instalar a Siderurgia Nacional em Alcochete, o que não se concretiza e origina divergências políticas que levariam ao seu afastamento do cargo.
Também durante décadas a colectividade manterá o único museu de Alcochete, sucessivamente valorizado por doações artísticas privadas, como as do cavaleiro tauromáquico José Samuel Lupi, grande amigo e muitas vezes dirigente da instituição.
Quando, em finais da década de 80, José Caninhas dirige o Aposento, surpreende-se com as honrarias concedidas ao seu presidente em colectividades tauromáquicas de Portugal e Espanha, neste caso em Ciudad Real, Badajoz e Ayamonte, cujos alcaides (presidentes de câmara) várias vezes se deslocaram a Alcochete durante as festas.
Na sua visão, colhida nesses anos, o homem alcochetano dividia-se então entre a terra e o mar (nunca se diz rio, porque nesta zona a largura do Tejo faz dele mar encapelado no Inverno), com coragem para enfrentar os touros.
Crê ainda que, apesar de períodos mais e menos positivos que sempre existiram ao longo destes 64 anos, o Aposento do Barrete Verde nunca morrerá por ser o embaixador das emoções alcochetanas.

10 agosto 2007

História breve das Festas do Barrete Verde e das Salinas


As primeiras festas do Barrete Verde realizaram-se a 7 de Setembro de 1941 e apenas dessa vez foram denominadas «das Salinas e do Barrete Verde».
Do ano seguinte em diante passaram a ter a denominação que ainda hoje mantêm: Festas do Barrete Verde e das Salinas.

Nesse primeiro ano a organização pertenceu à Santa Casa da Misericórdia de Alcochete, com o apoio da Câmara Municipal, de Samuel Lupi dos Santos Jorge e José André dos Santos e a colaboração da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898.

Logo nesse ano é criado o primeiro grupo de «Meninas do Barrete Verde», as quais colaboram na angariação de fundos. Nos anos posteriores têm sido formados novos grupos, que mantêm ainda hoje viva essa tradição.
Nas primeiras festas realizaram-se várias actividades lucrativas, tais como venda de flores, de bilhetes para a espera de gado, de emblemas e de barretes, além do aluguer de almofadas. As ofertas de artistas e da organização da corrida de toiros foram também significativas. As receitas reverteram para a Santa Casa da Misericórdia e o Asilo Barão de Samora Correia e o saldo positivo desse ano foi de 6.611$95.
Os festejos do Barrete Verde e das Salinas devem-se ao jornalista José André dos Santos, que aproveita a realização da habitual corrida de toiros para refazer as festas anuais da vila. Como jornalista e através dos seus conhecimentos nos jornais «O Século» e «Diário de Notícias», consegue ampla divulgação das festas.
O apoio dos dois periódicos levará a autarquia, em sinal de reconhecimento, a atribuir os respectivos nomes a duas artérias do centro histórico de Alcochete.

No ano de 1942 as festas continuarão a ter a colaboração e concurso da Santa Casa da Misericórdia e da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. Mas, em 1943, a Santa Casa da Misericórdia recebe avultada herança de Carlos Ferreira Prego (Barão de Samora Correia) e deixa de organizar as festas. Nesse ano a responsabilidade passa para a Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898, mantendo-se o apoio da Câmara Municipal.
Mas há dificuldades crescentes para arranjar entidade ou comissão que se incumba de organizar as festas anuais de Alcochete.
Em 1944, a Câmara Municipal decide formar uma comissão presidida pelo vereador António Antunes e constituída por Álvaro José da Costa, Virgílio Jorge Saraiva, Augusto Ferreira Saloio, Augusto Atalaia, João Batista Lopes Seixal, José de Oliveira, Augusto Ferreira Gonçalves de Oliveira e Augusto Ferreira da Costa.
Datados de 12 de Agosto de 1944 há estes versos, intitulados «Alcochete» e dedicados às festas por Guilherme Cardoso, filho de famílias alcochetanas:


Ó linda Alcochete

Tu tens um barrete
Como tradição
Por ser verde é esperança
Denota bonança
O Trabalho, o Pão

Terra bem modesta
Mas hoje na festa
Ostentas riqueza
A rir, a cantar
Assim vens mostrar
Ser bem portuguesa

Alcochetanos
Estais ufanos
Pelas festas das Salinas e Barrete
Por isso meu povo amigo
Vós devereis dar comigo
Um sagrado e grande viva
ALCOCHETE

Vila tão formosa

És tão valiosa
Como o ouro de lei
E és por sinal
O Torrão natal
Dum saudoso Rei

Sem ter ambições
Tens os teus brazões
Vincados na história
A qual te dá
Há séculos p'ra cá
Títulos de glória

Alcochetanos
Estais ufanos
Pelas festas das Salinas e Barrete
Por isso meu povo amigo
Vós devereis dar comigo
Um sagrado e grande viva
ALCOCHETE

Terminadas as festas de 1944, a comissão volta a reunir-se para garantir futuras organizações e decide convidar para um almoço várias personalidades influentes da vila, com o objectivo de constituir uma entidade que assuma a organização das festividades.
Desse almoço sai uma comissão que vem a dar origem ao Aposento do Barrete Verde, agremiação fundada em 20 de Agosto de 1944 com a finalidade principal de organizar as Festas dos Barrete Verde e das Salinas.
Daí em diante, colectividade e festas têm história paralela.
A 12 de Agosto de 1945 visita o Aposento o historiador e jornalista Gustavo de Matos Sequeira, a primeira individualidade a assinar o livro de honra da instituição com estes versos às «Meninas do Barrete Verde»:

Raparigas de Alcochete

Raparigas de barrete
Toucado de Portugal
Por vós ergo a minha taça
Meninas cheias de graça
Meninas cheias de sal

Bebo p'Ia vossa saúde
Bebo p'Ia vossa virtude
Bebo p'Ia vossa beleza
Bebo p'la vossa alegria
E p'los noivos que um dia
Haveis de ter concerteza.

A 16 de Setembro de 1955 o Aposento do Barrete Verde é visitado pelo fadista Moniz Trindade e pelos compositores Frederico de Brito e Ferrer Trindade, intérprete original e autores do fado "Barrete Verde", respectivamente (ver acima imagem que reproduz os autógrafos registados pelos três no Livro de Honra do Aposento).
Trata-se de uma canção muito popular na vila e hino das festas, causando emoção sempre que alguém a interpreta.
Eis, na íntegra, a letra do fado do «Barrete Verde»:


Barrete Verde e jaqueta

E a cinta preta
Toda franjada
Atrás dos toiros mais lestos
Quando os cabrestos
Vão d'abalada

Seguem a caminho da praça
E o gado passa
Como um foguete
Esperas de toiros é esta
A melhor festa
Que há n'Alcochete

Há sempre um toiro na calha
Que se tresmalha
Que faz das suas
Ninguém supõe a alegria
E a valentia
Que andam nas ruas

Depois é ver as faenas
Que são apenas
Prenúncios d'arte
Pegas com palmas e brados
Porque há forcados
Por toda a parte

Barrete, verdes campinas
Brancas salinas
Gente modesta
Que atira ao ar o barrete
Quando Alcochete
Se encontra em festa

Que andar no mar é seu fado
E o Tejo irado
Não lhe faz mágoa
Que vive alegre e contente
Porque é só gente
Da borda d'água

Num texto de Agosto de 1969, publicado no programa das Festas do Barrete Verde e das Salinas desse ano, o Dr. José Grillo Evangelista escreve o seguinte:
"O Alcochetano nasce entre o mar e a lezíria. Faz-se homem entre sal e a charneca. Torra-se ao sol do 'Salgado' do seu Tejo e morre, se for preciso, embarbelado entre os cornos de um toiro. Tais atributos de real valia, bem mereciam que alguma coisa os perpetuasse.
"José André dos Santos, alcochetano dos quatro costados como soe dizer-se, meteu mãos à obra e lançou um dia, a ideia de os consagrar. Aos quatro ventos se propagandeou a lembrança: na imprensa (O Século dando o primeiro sinal de avançar), na rádio, no boca-a-boca!...Que sei eu!... Tudo puxou certo. De todas as formas e feitios se trabalhou. Todos os esforços se congregaram.
"E assim surgiram, castiças e belas, as primeiras 'Festas do Barrete Verde e das Salinas', e o seu êxito correu célere, do Sul às longínquas terras nortenhas.

"Ficaram saudades da 'Festa'? - Se ficaram.- E mais que saudades, ficou o imperioso dever de se repetirem, ano a ano, como cartaz de uma linda Terra que a Deus aprouve marcar na formosura dos seus encantos naturais, da mesma maneira que marcara as amorosas flores dos seus jardins.
"Assim foi que, certo dia, três homens se deram as mãos (António Rodrigues Regatão, Joaquim José de Carvalho e Joaquim Tomaz da Costa Godinho) e ali mesmo, no Terreiro da nossa vila, na velha farmácia Gameiro, chamaram a si mais dezasseis carolas e na noite de 20 de Agosto de 1944, todos juntos, entre nacos de pão com linguiça assada e algumas goladas de água-pé, já bem madura, resolveram fundar o 'Aposento do Barrete Verde', penhor seguro da continuação das Festas.(...)
No livro «As Festas do Barrete Verde e das Salinas em Alcochete» (Lisboa, 1998), Luís Maria Pedrosa dos Santos Graça refere que, "em tempos passados, arranjavam-se os touros para as largadas, conversando a Direcção do Aposento do Barrete Verde com ganadeiros que, muitas vezes, os cediam por preço simbólico.
"O lote disponibilizado concentrava-se num pinhal existente a nascente da vila. À hora marcada, sempre enquadrados por campinos, os touros eram conduzidos a uma das entradas da povoação.
"(...) Os animais vinham em pontas e era suposto ser aquela a primeira vez que se confrontavam com o público, investindo em arranques que pediam cautela e inteligência veloz no desfeitear a força bruta..."
Nada disto sucede nos dias de hoje. Os touros, que já não são "arranjados para as largadas", saem de camionetas em dois pontos distintos da vila (Av. 5 de Outubro e Rua José André dos Santos), após ser lançado um morteiro de aviso. A condução dos animais para a Praça de Touros, razoavelmente cansados após tantas picardias de aficionados e afoitos, é bastante mais segura e bem enquadrada por campinos e "chocas".
A multidão que assiste tem também melhores condições de segurança, garantidas por enormes travessas de madeira dispostas ao longo dos percursos em que os toiros são soltos.
Isso não significa que não haja acidentes, embora quase sempre derivados da imprudência e do excesso de álcool.

Há mais informação sobre as Festas do Barrete Verde e das Salinas no blogue «Coisas de Alcochete», nomeadamente este texto.

26 abril 2007

Em memória do Dr. Simões Arrôs


Só agora tendo tomado conhecimento do falecimento do Dr. Manuel Simões Arrôs, ocorrido no passado dia 9, aos 96 anos, e lamentando, profundamente, que o passamento dessa invulgar personalidade alcochetana seja resumido em 11 linhas no jornal da terra (?), por imperativo de consciência reproduzo aqui, com as necessárias actualizações, o que acerca dele escrevi, em 2003, no defunto «Tágides».

Durante meio século tratou da saúde à maioria dos pais e avós de famílias tradicionais de Alcochete: camponeses, funcionários públicos, salineiros, operários, forcados e marujos.


Só os mais antigos residentes conheciam o Dr. Manuel Simões Arrôs, que desempenhou todos os cargos clínicos do concelho durante cerca de meio século: delegado e subdelegado de saúde, médico camarário, da Misericórdia, da "Caixa", de três secas de bacalhau e, no final da carreira, também em três fábricas.
Levado na onda pelo sogro, ajudou a fundar o Aposento do Barrete Verde, em 1944. Oito anos depois seria até presidente da Direcção.
Era uma das memórias vivas de Alcochete, desde 1943, preciosamente refrescada pela da esposa, campeã em datas.

A juventude
A 6 de Dezembro de 1910 nascia o primeiro médico da "Caixa" que houve em Samouco e Alcochete. Veio ao mundo e cresceu entre lutas operárias, em Braço de Prata (Lisboa).
Acaba por se formar na Faculdade de Medicina do Porto, em 17 de Outubro de 1941, obtendo a primeira colocação na vila alentejana de Ourique poucos dias depois.
Chega a Alcochete em 31 de Março de 1943, admitido por concurso público como "médico camarário" para a freguesia de Samouco, onde se desloca, de bicicleta, duas vezes por semana ou sempre que há casos urgentes.

Médico do povo e da Misericórdia
A 2 de Maio de 1944 é nomeado médico da Casa do Povo de Alcochete e, em 1951, o então director e médico residente do Hospital de Alcochete (situado à época na ala esquerda do actual edifício da Santa Casa da Misericórdia) era o Dr. José Grillo Evangelista - muito conceituado na vila e cujo nome seria perpetuado, anos depois, numa artéria da urbanização dos Barris.
Esse clínico desentende-se com a mesa da instituição e resolve sair, sendo substituído nas funções de médico e director pelo jovem Simões Arrôs.

O hospital cresce em importância e, em 1957, virá a ser criado um centro de assistência aos tuberculosos. O médico Simões Arrôs incumbe-se dele, a partir de 1 de Julho desse ano. Tais serviços serão extintos a 31 de Julho de 1978.

Médico dos primeiros operários fabris
Em 1958 é inaugurada a fábrica de pneus Firestone, que angaria localmente a maioria dos quadros médios e dos trabalhadores menos qualificados. O Dr. Simões Arrôs é o primeiro médico dessa empresa, da qual vem a ser afastado, em meados da década de 70, em circunstâncias nebulosas e por influência de um padre.
Entretanto, em 1959, chegavam também as fábricas de secagem e de preparação de bacalhau da Terra Nova. Primeiro instala-se a Bacalhau de Portugal, a seguir a Pescal e, por fim, a Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau (SNAB).

O Dr. Simões Arrôs será médico em todas, vindo a ser afastado da Pescal e da SNAB, no princípio da década de 70, quando, numa reunião da União Nacional (partido único do regime), um capataz da empresa diz a amigos que o "chefe do reviralho em Alcochete" é Simões Arrôs. Presente, o "patrão" almirante Henrique Tenreiro manda despedir o clínico.
Ficará só na Bacalhau de Portugal até a empresa se extinguir, porque o seu responsável era também assistido por ele e sempre se recusou a aceitar a exigência de afastamento feita por Tenreiro.
Na senda da industrialização, em 1963 e 1965, respectivamente, abrem também as as fábricas de alumínio (Português-Angola, já encerrada) e de latoaria Ormis (hoje a multinacional Crown, Cork & Seal), nas quais o Dr. Simões Arrôs exercerá também funções.
Nesta esteve até ao princípio da década de 90, tendo sido a sua última ocupação profissional.


Médico da Previdência
Em 1961, quando o Dr. Grillo Evangelista se reforma, o colega Simões Arrôs substitui-o como subdelegado de saúde no concelho. A 1 de Julho de 1972 será também nomeado delegado de saúde.
Entretanto, a 1 de Julho de 1962 era contratado pela Caixa de Previdência de Setúbal para a Casa do Povo de Alcochete (a primeira existiu no n.º 7 da Rua do Amaral, no edifício onde hoje está a sede social do Grupo Desportivo Alcochetense).
A assistência médica torna as instalações acanhadas e a Casa do Povo transitará então para a Rua do Chão do Conde.
Em 1963 é inaugurado o posto n.º 16 (Alcochete) da Caixa de Previdência, de que vem a ser o primeiro director, seguindo-se, a 1 de Julho de 1966, o cargo de médico do posto n.º 5 da Previdência (no Montijo). A 1 de Janeiro de 1974 virá a ser também nomeado médico-chefe deste posto.

Em Março de 1968, a mesa da Misericórdia decide que as tarefas de enfermagem ficam a cargo de uma irmandade religiosa, gerando-se um litígio com a enfermeira-chefe da época, o qual levará, em 1 de Abril, à demissão colectiva da equipa médica e da enfermeira (esposa do Dr. Simões Arrôs, com a qual viria a casar, em segundas núpcias, em 1973).
A 6 de Dezembro de 1980 cessa funções como médico municipal e delegado de saúde, por ter atingido o limite de idade (70 anos). A 1 de Setembro de 1982 sai também da Caixa de Previdência por estar à beira dos 72 anos de idade.

Histórias de "João Semana"
De meados da década de 40 o Dr. Simões Arrôs recordava-se (em 2003) do caso de um doente com tuberculose, que medicou com várias embalagens de estreptomicina, na época uma droga de preço elevado e fora do alcance de gente pobre.
A comparticipação pública na aquisição de medicamentos era então somente concedida a beneficiários, o que não era o caso desse paciente, pelo que os familiares teriam de pagar integralmente as embalagens necessárias.

Como essa família era muito pobre, o clínico Simões Arrôs decide emitir as receitas em nome do beneficiário, de modo a evitar despesas insuportáveis.
Mas Alcochete era uma aldeia, em que toda a gente se conhecia e revia quase diariamente, e, dias depois, o tesoureiro da Casa do Povo pergunta ao clínico qual a razão porque emitira receitas em nome de um paciente gozando de boa saúde, pois estivera com ele. Semanas depois a Casa do Povo queixa-se do Dr. Simões Arrôs aos serviços centrais da Previdência, que enviam um inspector para tirar o caso a limpo.
Este manda chamar todas as pessoas a quem o clínico passara receitas "suspeitas" e elas confirmam terem sido emitidas a seu favor. Logo, o clínico não estava a desviar medicamentos em proveito pessoal, como constaria de uma denúncia que o dava como homem rico.

Não podendo pegar-lhe por aí, o inspector dá ao caso contornos políticos. E avisa o Dr. Simões Arrôs de que, embora nada de reprovável fosse detectado, possivelmente seria demitido por ter fama de ser "comunista" - coisa que, na época e na terra, era comum ser apontado a algumas pessoas influentes.
Em meados da década de 40 tal "acusação" equivalia a ser despedido do Estado. Pior ainda no seu caso porque, anos antes, quando frequentava a faculdade de medicina, batera com as costas nas tarimbas do Aljube, da Penitenciária e da sede da PIDE.
Em 2003 confessava-me que nunca foi comunista, embora lidasse com a miséria do povo e detestasse o Estado Novo. E se alguma influência a propaganda marxista teve nos seus ideais de vida, quando viaja à URSS, em 1972, tudo se desmorona ao descobrir pedintes nas ruas e miséria como a de Alcochete.

A fundação do Aposento do Barrete Verde
A participação do Dr. Simões Arrôs na fundação do Aposento do Barrete Verde, em 1944 - cerca de um ano após assentar arraiais no concelho - faz-se por influência de seu sogro, Virgílio Jorge Saraiva, amante da festa brava e ligado à organização das festas anuais desde o seu início, em 1942.
O Aposento nasce num almoço organizado por António Luís Regatão, farmacêutico e então proprietário da Farmácia Gameiro, repasto para o qual Dr. Simões Arrôs é convidado pelo sogro.
Em 2003, com 91 anos e uma visão desapaixonada da política recente e do desenvolvimento da vila, era ainda indiscutível referência do concelho.
Todos os anos, no seu aniversário natalício, recebia inúmeras homenagens de gratidão.
Em lugar de destaque guardava cerâmicas e salvas dedicadas por forcados, bombeiros, colectividades artísticas e desportivas e pelos Centros de Saúde de Montijo e Alcochete.

Ao longo da vida foi ainda presidente das direcções do Aposento do Barrete Verde (em 1952) e dos Bombeiros Voluntários de Alcochete, bem como presidente da Assembleia Geral da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. Tratou (e ainda tratava em 2003, esporadicamente) de forcados e jogadores de futebol do Alcochetense, do Vulcanense e do Grupo Desportivo do Passil.

Principais homenagens
Em 14 de Fevereiro de 1981, almoço de homenagem organizado por dois amigos, no qual participaram cerca de 300 pessoas, tendo então recebido a medalha de mérito da Câmara Municipal de Alcochete.
Em Setembro de 1982 foi também homenageado pela vila de Alhos Vedros, onde durante muitos anos presidiu às juntas médicas que determinavam as reformas antecipadas de trabalhadores.
A 25 do mesmo mês, homenagem dos trabalhadores do posto médico do Montijo, que lhe ofereceram um relógio em ouro.

A 10 de Junho de 1991, homenagem do Governador Civil de Setúbal, que lhe entrega a medalha de mérito do distrito.
A 10 de Fevereiro de 2001, almoço de homenagem promovido pelo Aposento do Barrete Verde, que dá o seu nome a uma das salas da sede. Associa-se a Câmara Municipal de Alcochete, cuja edilidade lhe outorga a medalha dourada de mérito (o mais alto galardão do município). O almoço teve tal afluência que as inscrições tiveram de ser encerradas uma semana após o seu anúncio, por se ter esgotado a lotação da sala.
Em 2006 o município de Alcochete concedeu-lhe nova distinção honorífica.

Embora algo tenha escrito sobre o assunto e muito mais debatido com responsáveis autárquicos, nunca consegui que, em vida, o Dr. Manuel Simões Arrôs recebesse a honra que mais ansiava: ter o seu nome perpetuado numa artéria da vila.
Continuo a considerar que todas as honrarias e os gestos de gratidão devem exprimir-se durante a vida das pessoas. Infelizmente, continua a ser norma que apenas os defuntos têm direito a emprestar o nome a uma rua. Não conheço lei que a tal obrigue, nem nunca ninguém me deu uma explicação aceitável.
Simões Arrôs merecia tê-lo na rua do Centro de Saúde de Alcochete, a que, há anos, deram o nome do capitão Salgueiro Maia.