26 abril 2007
Em memória do Dr. Simões Arrôs
Só agora tendo tomado conhecimento do falecimento do Dr. Manuel Simões Arrôs, ocorrido no passado dia 9, aos 96 anos, e lamentando, profundamente, que o passamento dessa invulgar personalidade alcochetana seja resumido em 11 linhas no jornal da terra (?), por imperativo de consciência reproduzo aqui, com as necessárias actualizações, o que acerca dele escrevi, em 2003, no defunto «Tágides».
Durante meio século tratou da saúde à maioria dos pais e avós de famílias tradicionais de Alcochete: camponeses, funcionários públicos, salineiros, operários, forcados e marujos.
Só os mais antigos residentes conheciam o Dr. Manuel Simões Arrôs, que desempenhou todos os cargos clínicos do concelho durante cerca de meio século: delegado e subdelegado de saúde, médico camarário, da Misericórdia, da "Caixa", de três secas de bacalhau e, no final da carreira, também em três fábricas.
Levado na onda pelo sogro, ajudou a fundar o Aposento do Barrete Verde, em 1944. Oito anos depois seria até presidente da Direcção.
Era uma das memórias vivas de Alcochete, desde 1943, preciosamente refrescada pela da esposa, campeã em datas.
A juventude
A 6 de Dezembro de 1910 nascia o primeiro médico da "Caixa" que houve em Samouco e Alcochete. Veio ao mundo e cresceu entre lutas operárias, em Braço de Prata (Lisboa).
Acaba por se formar na Faculdade de Medicina do Porto, em 17 de Outubro de 1941, obtendo a primeira colocação na vila alentejana de Ourique poucos dias depois.
Chega a Alcochete em 31 de Março de 1943, admitido por concurso público como "médico camarário" para a freguesia de Samouco, onde se desloca, de bicicleta, duas vezes por semana ou sempre que há casos urgentes.
Médico do povo e da Misericórdia
A 2 de Maio de 1944 é nomeado médico da Casa do Povo de Alcochete e, em 1951, o então director e médico residente do Hospital de Alcochete (situado à época na ala esquerda do actual edifício da Santa Casa da Misericórdia) era o Dr. José Grillo Evangelista - muito conceituado na vila e cujo nome seria perpetuado, anos depois, numa artéria da urbanização dos Barris.
Esse clínico desentende-se com a mesa da instituição e resolve sair, sendo substituído nas funções de médico e director pelo jovem Simões Arrôs.
O hospital cresce em importância e, em 1957, virá a ser criado um centro de assistência aos tuberculosos. O médico Simões Arrôs incumbe-se dele, a partir de 1 de Julho desse ano. Tais serviços serão extintos a 31 de Julho de 1978.
Médico dos primeiros operários fabris
Em 1958 é inaugurada a fábrica de pneus Firestone, que angaria localmente a maioria dos quadros médios e dos trabalhadores menos qualificados. O Dr. Simões Arrôs é o primeiro médico dessa empresa, da qual vem a ser afastado, em meados da década de 70, em circunstâncias nebulosas e por influência de um padre.
Entretanto, em 1959, chegavam também as fábricas de secagem e de preparação de bacalhau da Terra Nova. Primeiro instala-se a Bacalhau de Portugal, a seguir a Pescal e, por fim, a Sociedade Nacional dos Armadores do Bacalhau (SNAB).
O Dr. Simões Arrôs será médico em todas, vindo a ser afastado da Pescal e da SNAB, no princípio da década de 70, quando, numa reunião da União Nacional (partido único do regime), um capataz da empresa diz a amigos que o "chefe do reviralho em Alcochete" é Simões Arrôs. Presente, o "patrão" almirante Henrique Tenreiro manda despedir o clínico.
Ficará só na Bacalhau de Portugal até a empresa se extinguir, porque o seu responsável era também assistido por ele e sempre se recusou a aceitar a exigência de afastamento feita por Tenreiro.
Na senda da industrialização, em 1963 e 1965, respectivamente, abrem também as as fábricas de alumínio (Português-Angola, já encerrada) e de latoaria Ormis (hoje a multinacional Crown, Cork & Seal), nas quais o Dr. Simões Arrôs exercerá também funções.
Nesta esteve até ao princípio da década de 90, tendo sido a sua última ocupação profissional.
Médico da Previdência
Em 1961, quando o Dr. Grillo Evangelista se reforma, o colega Simões Arrôs substitui-o como subdelegado de saúde no concelho. A 1 de Julho de 1972 será também nomeado delegado de saúde.
Entretanto, a 1 de Julho de 1962 era contratado pela Caixa de Previdência de Setúbal para a Casa do Povo de Alcochete (a primeira existiu no n.º 7 da Rua do Amaral, no edifício onde hoje está a sede social do Grupo Desportivo Alcochetense).
A assistência médica torna as instalações acanhadas e a Casa do Povo transitará então para a Rua do Chão do Conde.
Em 1963 é inaugurado o posto n.º 16 (Alcochete) da Caixa de Previdência, de que vem a ser o primeiro director, seguindo-se, a 1 de Julho de 1966, o cargo de médico do posto n.º 5 da Previdência (no Montijo). A 1 de Janeiro de 1974 virá a ser também nomeado médico-chefe deste posto.
Em Março de 1968, a mesa da Misericórdia decide que as tarefas de enfermagem ficam a cargo de uma irmandade religiosa, gerando-se um litígio com a enfermeira-chefe da época, o qual levará, em 1 de Abril, à demissão colectiva da equipa médica e da enfermeira (esposa do Dr. Simões Arrôs, com a qual viria a casar, em segundas núpcias, em 1973).
A 6 de Dezembro de 1980 cessa funções como médico municipal e delegado de saúde, por ter atingido o limite de idade (70 anos). A 1 de Setembro de 1982 sai também da Caixa de Previdência por estar à beira dos 72 anos de idade.
Histórias de "João Semana"
De meados da década de 40 o Dr. Simões Arrôs recordava-se (em 2003) do caso de um doente com tuberculose, que medicou com várias embalagens de estreptomicina, na época uma droga de preço elevado e fora do alcance de gente pobre.
A comparticipação pública na aquisição de medicamentos era então somente concedida a beneficiários, o que não era o caso desse paciente, pelo que os familiares teriam de pagar integralmente as embalagens necessárias.
Como essa família era muito pobre, o clínico Simões Arrôs decide emitir as receitas em nome do beneficiário, de modo a evitar despesas insuportáveis.
Mas Alcochete era uma aldeia, em que toda a gente se conhecia e revia quase diariamente, e, dias depois, o tesoureiro da Casa do Povo pergunta ao clínico qual a razão porque emitira receitas em nome de um paciente gozando de boa saúde, pois estivera com ele. Semanas depois a Casa do Povo queixa-se do Dr. Simões Arrôs aos serviços centrais da Previdência, que enviam um inspector para tirar o caso a limpo.
Este manda chamar todas as pessoas a quem o clínico passara receitas "suspeitas" e elas confirmam terem sido emitidas a seu favor. Logo, o clínico não estava a desviar medicamentos em proveito pessoal, como constaria de uma denúncia que o dava como homem rico.
Não podendo pegar-lhe por aí, o inspector dá ao caso contornos políticos. E avisa o Dr. Simões Arrôs de que, embora nada de reprovável fosse detectado, possivelmente seria demitido por ter fama de ser "comunista" - coisa que, na época e na terra, era comum ser apontado a algumas pessoas influentes.
Em meados da década de 40 tal "acusação" equivalia a ser despedido do Estado. Pior ainda no seu caso porque, anos antes, quando frequentava a faculdade de medicina, batera com as costas nas tarimbas do Aljube, da Penitenciária e da sede da PIDE.
Em 2003 confessava-me que nunca foi comunista, embora lidasse com a miséria do povo e detestasse o Estado Novo. E se alguma influência a propaganda marxista teve nos seus ideais de vida, quando viaja à URSS, em 1972, tudo se desmorona ao descobrir pedintes nas ruas e miséria como a de Alcochete.
A fundação do Aposento do Barrete Verde
A participação do Dr. Simões Arrôs na fundação do Aposento do Barrete Verde, em 1944 - cerca de um ano após assentar arraiais no concelho - faz-se por influência de seu sogro, Virgílio Jorge Saraiva, amante da festa brava e ligado à organização das festas anuais desde o seu início, em 1942.
O Aposento nasce num almoço organizado por António Luís Regatão, farmacêutico e então proprietário da Farmácia Gameiro, repasto para o qual Dr. Simões Arrôs é convidado pelo sogro.
Em 2003, com 91 anos e uma visão desapaixonada da política recente e do desenvolvimento da vila, era ainda indiscutível referência do concelho.
Todos os anos, no seu aniversário natalício, recebia inúmeras homenagens de gratidão.
Em lugar de destaque guardava cerâmicas e salvas dedicadas por forcados, bombeiros, colectividades artísticas e desportivas e pelos Centros de Saúde de Montijo e Alcochete.
Ao longo da vida foi ainda presidente das direcções do Aposento do Barrete Verde (em 1952) e dos Bombeiros Voluntários de Alcochete, bem como presidente da Assembleia Geral da Sociedade Imparcial 15 de Janeiro de 1898. Tratou (e ainda tratava em 2003, esporadicamente) de forcados e jogadores de futebol do Alcochetense, do Vulcanense e do Grupo Desportivo do Passil.
Principais homenagens
Em 14 de Fevereiro de 1981, almoço de homenagem organizado por dois amigos, no qual participaram cerca de 300 pessoas, tendo então recebido a medalha de mérito da Câmara Municipal de Alcochete.
Em Setembro de 1982 foi também homenageado pela vila de Alhos Vedros, onde durante muitos anos presidiu às juntas médicas que determinavam as reformas antecipadas de trabalhadores.
A 25 do mesmo mês, homenagem dos trabalhadores do posto médico do Montijo, que lhe ofereceram um relógio em ouro.
A 10 de Junho de 1991, homenagem do Governador Civil de Setúbal, que lhe entrega a medalha de mérito do distrito.
A 10 de Fevereiro de 2001, almoço de homenagem promovido pelo Aposento do Barrete Verde, que dá o seu nome a uma das salas da sede. Associa-se a Câmara Municipal de Alcochete, cuja edilidade lhe outorga a medalha dourada de mérito (o mais alto galardão do município). O almoço teve tal afluência que as inscrições tiveram de ser encerradas uma semana após o seu anúncio, por se ter esgotado a lotação da sala.
Em 2006 o município de Alcochete concedeu-lhe nova distinção honorífica.
Embora algo tenha escrito sobre o assunto e muito mais debatido com responsáveis autárquicos, nunca consegui que, em vida, o Dr. Manuel Simões Arrôs recebesse a honra que mais ansiava: ter o seu nome perpetuado numa artéria da vila.
Continuo a considerar que todas as honrarias e os gestos de gratidão devem exprimir-se durante a vida das pessoas. Infelizmente, continua a ser norma que apenas os defuntos têm direito a emprestar o nome a uma rua. Não conheço lei que a tal obrigue, nem nunca ninguém me deu uma explicação aceitável.
Simões Arrôs merecia tê-lo na rua do Centro de Saúde de Alcochete, a que, há anos, deram o nome do capitão Salgueiro Maia.
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5 comentários:
O Dr.Manuel Simões Arrôs foi um homem de grande dignidade.
Na minha memória guardo múltiplas conversas que tive com o médico competente e o cidadão eminente. De todas, a última foi deveras pitoresca. Perguntei-lhe eu por que escrevia o apelido com um "s" no fim. Respondeu-me que sempre escrevera o patronímico com um "z" até um professor de Português que teve no Liceu o demover de tal sob o petexto de confusão com o cereal. E foi aqui que o nonagenário, sempre bem disposto se riu a bom rir.
O Dr. Arrôs, quando passava por uma pessoa, nunca se fingia distraído. Era eu um "teenager" e ficava surpreendido quando pelintras me ignoravam, mas o médico ilustre me saudava de alto e bom som.
A notícia da morte do Dr. Arrôs fez que também morresse em mim qualquer coisa porque o espaço da bonomia em Alcochete ficou mais pobre.
Há algumas semanas faleceu também um grande fadista da nossa terra, António Maduro. Este nosso patrício levou a alcochetanidade a todo o Portugal e até a várias cidades europeias.
Provavelmente, António Maduro também não era da "nomenklatura" e por isso passou despercebido o seu falecimento.
Não tenho elementos para escrever sobre ele.
De facto, António Maduro nunca foi da "nomenklatura".
Não sei se neste blog ou no "defunto" Tágides, mas o certo é que eu falei do fadista António Maduro aqui ou lá!
A Assembleia Municipal de Alcochete, reunida no dia 26 de Abril aprovou, por unânimidade, um voto de pesar pela morte do Dr. Arrôs eapresentou como proposta a atribuição do seu nome a uam rua de Alcochete. Nesse mesmo dia, o Senhor Presidente da Câmara Municipal informou que a Cãmara já aprovou uma decisão nesse mesmo sentido. Este executivo não esquece as pessoas da terra....
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