08 outubro 2008

Círio dos Marítimos de Alcochete



A propósito do texto anterior parece-me oportuno arquivar aqui outro sobre o Círio dos Marítimos de Alcochete, a mais importante referência popular alcochetana por ser manifestação multissecular. A animação apensa a este texto foi por mim realizada e está no «YouTube» há mais de um ano (clicar na seta a meio da imagem para correr a animação).



Segundo Luís Marques, autor de «Tradições Religiosas Entre o Tejo e o Sado», no litoral de Setúbal a Coimbra um círio é uma confraria popular que anualmente se desloca a um santuário, em cumprimento de "promessa antiga" e colectiva que teria feito a povoação nos míticos tempos idos.
A promessa consiste apenas em venerar a imagem do santuário, pernoitando num albergue local, sem outras obrigações católicas.
O círio em deslocação representa-se por uma bandeira – de que constam o nome da povoação e o do santuário – e uma delegação da povoação, cumprindo esta a promessa antiga em nome de todos.
De acordo com o citado autor, o círio é produto da religião popular e alheio à Igreja Católica, podendo ter origem arcaica e tribal.
Havendo notícias deles desde o séc. XV, seis círios da Senhora da Atalaia (freguesia hoje pertencente ao concelho do Montijo e distando cerca de 6km do centro de Alcochete) estão ainda activos e impõem-se a alguma indiferença do clero, constituindo um caso paradigmático de autonomia religiosa e de continuidade da cultura ancestral.
Os círios dos marítimos chamavam-se outrora "círios dos marítimos casados e solteiros de Alcochete", resultando de uma profunda fé em Nossa Senhora da Atalaia, padroeira dos marítimos alcochetanos.
A origem do actual círio é desconhecida e pode remontar a épocas bastante recuadas, embora haja documentação que aparenta comprovar a sua existência no ano de 1502. Mas subsistem algumas dúvidas na datação, impossíveis de esclarecer até ao momento.
Luís Marques nota também que por marítimos não se entendia os pescadores mas gente ligada à produção e condução de barcos, o que incluía calafates, carpinteiros, serventes, marujos e outros tripulantes.
Ultimamente, porém, quase só os pescadores assumem a responsabilidade da realização da festa, porque a maioria das tradicionais profissões navais extinguiu-se, tendo desaparecido também os arrais e as embarcações típicas do Tejo.
Luís Marques considera também que o círio dos marítimos é uma das mais arcaicas e raras manifestações profanas.
Em obra posterior – intitulada «Círio dos Marítimos de Alcochete» – Mário Balseiro Dias descreve uma lenda, segundo a qual, "em época remota, um barco navegava no rio Tejo e uma tempestade surpreendeu-o. Aflito, um dos barqueiros prometeu a Nossa Senhora da Atalaia que, caso se salvasse com os companheiros, organizaria uma confraria para festejá-la anualmente. Como o tempo amainou e puderam alcançar terra a salvo, desde então os marítimos alcochetanos têm cumprido a promessa".
O mesmo autor refere que, segundo um documento de 1512, já então existia a Confraria dos Barqueiros de Alcochete.

O ritual do círio

O Círio dos Marítimos de Alcochete realiza-se anualmente, durante quatro dias, sempre na Páscoa, tendo uma cruz do festeiro (do séc. XIX e em prata), um guião de seda lavrada e actualmente cerca de uma centena de bandeiras (de cetim e bordadas, pintadas ou estampadas).
Constitui a mais antiga tradição conhecida na vila de Alcochete e é uma espécie de ritual para a população da borda d'água (durante séculos caracterizada por marítimos ligados a actividades dependentes do rio).
É da tradição que, no período do círio, os romeiros (hoje mais de um milhar) almocem e jantem em conjunto, com refeições preparadas e confeccionadas sob a responsabilidade do festeiro (ou de uma Comissão da Festa, constituída formalmente por quatro casais que têm de ter filhos varões).
A logística dos repastos não é fácil, bastando referir que, normalmente, consomem-se 5 bovinos, 250 quilos de bacalhau, 500 quilos de peixe e mais de uma tonelada de batatas.
Têm direito a participar nas refeições do círio – que constituem, acima de tudo, momentos de muita animação e de franco convívio – pessoas que, na festa do ano anterior, tenham arrematado bandeiras ou fogaças à porta da igreja da Atalaia.
Os preparativos duram vários meses e, no domingo anterior ao da Páscoa (Domingo de Ramos), na missa realizada na Igreja Matriz de Alcochete, o pároco da freguesia benze as medalhas do círio.
O círio propriamente dito principia no sábado de Aleluia, com um almoço servido na Casa do Círio (actualmente situada na antiga fábrica de alumínio, frente à praça de touros de Alcochete). No final do repasto os romeiros deslocam-se à ponte-cais da vila, aguardando aí a chegada do "Chininá", uma charanga popular com gaita de foles e caixa, transportado desde local não revelado a bordo da fragata municipal «Alcatejo» (o seu actual arrais, Augusto Manso, bem como seu irmão António, são antigos fragateiros e pescadores do rio, tendo integrado várias comissões da festa. Essa responsabilidade coube também ao filho de António, então com pouco mais de 40 anos, que participou pela primeira vez no círio tinha apenas um mês de vida e, há anos, ambicionava editar um livro sobre esta tradição local).
O "Chininá" percorre várias artérias da zona histórica da vila e entra em tascas e estabelecimentos mediante convite dos proprietários. O desfile dura até perto da hora do jantar, também servido na Casa do Círio.
No domingo de Páscoa, pela manhã, o "Chininá" (ou a "gaita") volta a sair à rua, circulando pela vila de Alcochete até perto da hora de almoço, novamente servido na Casa do Círio.
À tarde o círio percorre um circuito na zona histórica, sendo o cortejo organizado do seguinte modo: abre com o filho do festeiro (transportando a cruz de prata) e o juiz (um menor que pode ser ou não filho de marítimo), ambos montados a cavalo. Participam muitas crianças, que têm papel de destaque porque as estimula a participar futuramente.
Ser festeiro no círio simboliza poder e riqueza, por lhe caber a organização da dispendiosa festa. Antigamente era festeiro quem invocava ter feito uma promessa, ou apresentasse outra justificação aceitável, obtendo prestígio indirecto através dos filhos.
No desfile da tarde de domingo as mulheres montam em burros, sentando-se de lado e sempre com as pernas voltadas para a direita, devendo os animais ser alindados com flores campestres e lençóis brancos decorados por rendas. As solteiras envergam fatos novos e seguem à frente, as casadas atrás.
A última mulher do desfile é a esposa do festeiro. Ao casal cabe convidar senhoras solteiras e casadas que integrarão o cortejo. É o popularmente conhecido "cortejo dos burros", na realidade o desfile das senhoras solteiras e casadas, o elemento social em evidência neste ritual secular alcochetano.
Luís Marques assinala no livro atrás citado que, ao exporem-se e ao passearem-se pela vila, afirmam o seu controlo na sociedade. As casadas representam a autoridade e as solteiras anunciam a continuidade. O homem tem papel secundário, tanto mais respeitado quanto a esposa ou a filha se evidenciem no cortejo, pelo que é posto cuidado especial na indumentária e no arranjo e decoração do burro que as transporta.
Perto do pôr-do-sol do domingo de Páscoa, frente à Escola D. Manuel I, o círio organiza a partida para a Atalaia. Antigamente a romagem fazia-se de burro, em carroças ou a pé, e os romeiros dormiam na Atalaia. Hoje a deslocação faz-se sobretudo de automóvel.
A festa continua à noite, na Casa do Círio dos Olhos de Água (Atalaia), com mais um jantar. No final toda a gente retorna a casa.
Na segunda-feira, por volta das 09h00, junto à Igreja Matriz de Alcochete, inicia-se a romaria a pé à Atalaia. Em 2002 foram cerca de duas centenas as pessoas que percorreram os 6km de distância, em 2004 mais de 250.
À chegada à Atalaia os romeiros dirigem-se à igreja, onde assistem à missa, seguindo-se o almoço e a procissão (à frente da qual vai o filho do festeiro, ladeado pela juíza e o juiz. Incorporam-se o guião do círio e a imagem de Nossa Senhora da Atalaia, escutando-se em fundo o rufar do tambor do "Chininá").
Antes da missa os romeiros entregam ao festeiro as bandeiras arrematadas no ano anterior, pagando o valor da arrematação e recebendo em troca um símbolo (a medalha) que colocam no peito. No período da manhã são também entregues as fogaças a leiloar. As bandeiras novas serão benzidas durante a missa e posteriormente entregues ao festeiro, a fim de integrarem o leilão da tarde.
As bandeiras e as medalhas identificam o círio e o seu valor define uma hierarquia no funcionamento da festa. As bandeiras contêm, normalmente, uma representação da Senhora da Atalaia, a identificação da localidade, do ofertante e por vezes também a data e a graça obtida.
As medalhas são de três tamanhos (as maiores e mais valiosas apenas exibidas pelo filho do festeiro, juíza e juiz), sendo feitas pela esposa do festeiro com cartão, tecido, papel de alumínio e missangas. Constituem, normalmente, representações de motivos náuticos (barcos sobretudo).
De notar que as fogaças, um bolo típico de Alcochete, são os doces pães desta festa popular. Cada ofertante leva sete fogaças para o leilão realizado à porta da igreja da Atalaia, uma por cada dia da semana e pesando individualmente um quilograma, augurando abundância e afastando infortúnios. As fogaças podem ou não constituir o pagamento de uma promessa.
Com esse ritual cumprem-se votos antigos e o arrematante compromete-se a trazer outras tantas fogaças ao leilão do ano seguinte.
Comer as fogaças oferecidas ao círio, segundo relatos antigos, torna a pessoa e a colectividade a que pertence indemnes à peste e às pragas.
O leilão das bandeiras principia pela mais valiosa, o guião. Os arrematantes ficam na posse das bandeiras durante um ano e o guião é guardado pelo festeiro.
No final da tarde de segunda-feira, após o regresso do círio a Alcochete, organiza-se novo desfile no circuito tradicional na zona histórica da vila, montando novamente as senhoras os burros. Os novos arrematantes vão atrás, num ruidoso cortejo automóvel, exibindo as bandeiras que guardarão durante um ano. Os ex-detentores de bandeiras prendem uma medalha ao peito.
Na noite desse dia, na Casa do Círio, em Alcochete, realiza-se um beberete oferecido pela juíza, pelo juiz e pelo festeiro do ano seguinte.
Na terça-feira há novo almoço na Casa do Círio, seguindo-se, ao final da tarde, o desfile na zona histórica de Alcochete de inúmeros pares de jovens, à frente dos quais seguem o filho do festeiro, a juíza e o juiz, ostentando os seus distintivos. A festa termina com um derradeiro e muito aguardado jantar, novamente na Casa do Círio.
No início da década de 70 do séc. XX fazia-se a festa com 12 contos, actualmente custa mais de 10.000. O financiamento das despesas resulta apenas da arrematação das bandeiras e das fogaças, no adro da igreja da Atalaia, paga somente no ano seguinte.
Assim se preserva a tradição secular do Círio dos Marítimos de Alcochete, que descrevo apenas sucintamente, cuja continuidade nem sempre tem sido fácil.
Respeitar e compreender esta romagem e o seu significado profundo na vida local é o que se pede aos alcochetanos de hoje e do futuro.

Referências bibliográficas:
«Tradições Religiosas Entre o Tejo e o Sado», Luís Marques, Lisboa 1996, Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões, Universidade Nova de Lisboa;
«Círio dos Marítimos de Alcochete», Mário Balseiro Dias, Alcochete 2002, Câmara Municipal de Alcochete;
«Monografia do Concelho de Alcochete (Séculos XII-XVI) Volume I - Administração», Mário Balseiro Dias, Montijo 2004, edição do autor.

2 comentários:

Paulo Benito disse...

Excelente trabalho. Parabéns

Fonseca Bastos disse...

Obrigado.