Poderíamos ver em Memorial do Convento de José Saramago uma obra bipolarizada pela construção do Convento de Mafra por um lado e da Passarola por outro.
A construção do Convento de Mafra reverte-se na desconstrução de todo um universo civilizacional de raiz cristã.
De facto, a heroína do romance, Blimunda, «...diz do outro lado do pano, em voz alta [...], Não tenho pecados a confessar» (Saramago, José, Memorial do Convento, Círculo de Leitores, Lisboa, 1984). Esta mesma personagem, quase para o fim do texto, dirá taxativamente a Baltasar: «O pecado não existe...».
Se o pecado não existe, não faz sentido o perdão, estrutura de liberdade contra o fatalismo que reduz à luta de classes toda a História até ao fim desta.
A construção da Passarola, em completa ruptura com o passado, projecta-se para o futuro rumo à vitória. Isto mesmo é simbolizado pelo voo da máquina de Bartolomeu Lourenço de Gusmão a passar triunfalmente por cima do Convento com o Padre a bordo mais Baltasar e Blimunda.
A figura romanceada do Padre Bartolomeu de Gusmão aparece-nos a abdicar da veste da Fé para envergar a da heresia («...ao padre Bartolomeu Lourenço ensinaram que Deus, se sim é uno em essência, é trino em pessoa, e hoje as mesmas gaivotas o fizeram duvidar»), soerguendo-se como o profeta novo de uma nova Igreja, advento de outra Humanidade no limiar da paz perpétua, utopia prefigurada pelo casal protagonista.
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