13 maio 2012

Descartes quis dizer: "Duvido, logo sou"

-Abraão!
Ele respondeu:
-Aqui estou!
E Deus disse:
-Pega no teu filho, no teu único filho, a quem tanto amas, Isaac, e vai à terra de Moriah, onde o oferecerás em holocausto, num dos montes que eu te indicar.
(Génesis, 22, 1-2)

Antes que algumas pessoas, tristemente, carreguem o sobrolho, devo esclarecer que a passagem bíblica que transcrevo é a representação dos costumes, quero dizer, a representação da realidade ao tempo do grande patriarca Abraão.
Para as mesmas pessoas, resta-me ainda responder à pergunta que precipitadamente sei que me estão a fazer: que tem isto a ver com Descartes? Resposta: tudo.
Abraão vê-se perante um problema a resolver de magnitude sem par. Que fazer? Dar perpetuidade ao recebido ou empreender a quebra? Isaac é o seu único filho legítimo. A ordem desde a bruma dos tempos é que deveria imolar o filho primogénito a favor da inquestionabilidade do profundo amor a Deus. Instala-se a dúvida no coração de Abraão. Se se põe do lado do legado, logo vê o filho morto sobre a ara que erguerá quando chegar ao cimo do monte; se se põe do lado de Isaac, arrasa a ordem oriunda dos seus antepassados, fonte de equilíbrio. Que fazer? A realidade que foi a dos seus pais e avós não se ajusta à situação que lhe faz frente.
Abraão não duvida de que ama Deus. E Deus não o sabe? Sim, Deus sabe que Abraão ama Deus no âmago do seu coração. Que necessidade tem Deus deste sacrifício que arrancará a alma a seu filho e a ele também?
E do sagrado costume Abraão passava para Isaac e deste para o sagrado costume. Onde se iria deter? Ao lado do filho, subia lenta e penosamente o monte, o cajado na mão, a água desde o rosto a molhar-lhe o corpo todo.
Chegado ao alto do monte, Abraão colheu pedras, pô-las umas sobre as outras, a lenha em cima, por fim o filho, ergue o punhal, susteve-o um pouco e desfaz a dúvida a favor da carne da sua carne, a favor de Isaac. O recebido já não se adequava à realidade, a verdade ganhou um esplendor maior porque Deus sabe o que vai dentro de cada um de nós e não precisa de sacrifícios humanos para saber que o amamos.
Assim, a dúvida foi resolvida a favor de uma verdadeira revolução, a favor da lídima Fé em Deus.
A dúvida foi o pensamento de Abraão em tempestade que só repousou quando ele optou por uma das alternativas que se lhe apresentavam ao espírito.
Ora o "penso, logo sou" cartesiano significa, no fundo, "duvido, logo sou". Se isto fosse verdade, Abraão para ser teria que duvidar sempre sem que pudesse tomar alguma resolução. Mas a dúvida não é um estado. A dúvida é um não-estar. Enquanto duvido entre Pedro e Paulo, não estou com Pedro nem com Paulo. Então a pergunta é esta: como é que a permanência, isto é, o ser, é uma consequência do não-permanente, isto é, a dúvida?
Descartes não tem razão.

Sem comentários: