09 junho 2012
Cesário Verde
As transcrições de versos de Cesário que neste apontamento se fizerem são extraídos da Obra Completa de Cesário Verde, organização de Joel Serrão, Livros Horizonte, 1988.
Em Cesário Verde, recorrentemente, o Estado é a fonte desencadeadora do mal. Isto logo se vê num dos seus primeiros poemas, Ele, publicado em 1874: «Era a repercussão dos bodos luculianos!/E os áulicos boçais e os parasitas nobres/bebiam doidamente os vinhos de mil anos»
Essa 'fonte desencadeadora do mal' também é vista através da própria figura feminina, aqui e acolá representação do poder que arrocha inexoravelmente: «Cintila no seu rosto a lucidez das jóias./Ao deparar consigo a fantasia pasma;/Pausadamente lembra o silvo das jibóias/E a marcha demorada e muda dum fantasma» (Frígida, 1875).
A estrutura mental de Cesário Verde é essencialmente cristã. Isto vê-se não só pela síntese que é toda a poesia deste segundo Camões, quero dizer, pelo diálogo que o poeta mantem com os lugares-comuns (topoi) do cristianismo, mas também porque nunca faz o que Pessoa e Saramago farão mais tarde: destruição da Trindade e de todos os mistérios do Catolicismo, do Símbolo dos Apóstolos (Credo), da Virgem Maria, coroa máxima da ideia de mãe, etc. Mas Cesário, como Bocage no séc. XVIII e Eça, por exemplo, no séc. XIX, é, com toda a justeza que historicamente lhe assiste, anti-clerical porque ele se deparava com um clero corrupto mancomunado com o Estado, tudo isto um estorvo duro de ultrapassar à progressão da burguesia laboriosa. De volta a outro poema de 1874, Impossível, pode ler-se na última estrofe: «Eu posso amar-te como o Dante amou,/Seguir-te sempre como a luz ao raio,/Mas ir, contigo, à igreja, isso não vou,/Lá nessa é que eu não caio!». Este anti-clericalismo é recorrente em toda a obra cesariana.
Cesário Verde não perde tempo com os parasitas da sociedade, quero eu dizer, não perde tempo com aqueles que mais lucram com o trabalho de todos. Ele apenas glorifica quem trabalha, tal como, entre vários poemas, se pode verificar em O Sentimento dum Ocidental, 1887. Aqui são exaltados os, diríamos hoje, taxistas («Batem os carros de aluguer, ao fundo,/Levando à via-férrea os que vão...»); os carpinteiros («Como morcegos, ao cair das badaladas,/Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros»); os calafates («Voltam os calafates, aos magotes,/De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos»); as varinas («E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,/Correndo com firmeza, assomam as varinas»); as costureiras e floristas («E mais: as costureiras, as floristas/Descem dos magasins, causam-me sobressaltos»); os emigrados («Entro na brasserie; às mesas de emigrados,/Ao riso e à crua luz joga-se o dominó»); as prostitutas («E saio. A noite pesa, esmaga. Nos/Passeios de lajedo arrastam-se as impuras»); os forjadores («Num cutileiro, de avental, ao torno,/Um forjador maneja um malho, rubramente»); os padeiros («E de uma padaria exala-se, inda quente,/Um cheiro salutar e honesto a pão no forno»); os professores («E, nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,/Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,/Meu velho professor nas aulas de latim!»), etc.
A explicação dada, a nível universitário, sobre a razão de o poeta apresentar o seu professor de Latim a pedir esmola era irracional como irracional ainda é a concepção da temática cidade/campo implantada em todo o ensino escolar.
Inclusive na Universidade, participei em debates em torno do par cidade/campo. Uns diziam que gostavam mais da cidade porque nesta há cinemas, teatros, vida nocturna, etc. Outros diziam que detestavam o trânsito e o ar poluído das cidades, preferindo o ar puro do campo, o contacto com a natureza, etc. Já viram alguém a defender que a praia é melhor do que as termas, estas preferidas por outro? O espírito da coisa era esse. Alguns professores, tão alienados como os próprios alunos, colaboravam com tudo isto, deitando da boca para fora que uma coisa complementava a outra.
Por trás da dupla cidade/campo estão plataformas económicas da sociedade. A cidade identifica-se mais com o universo burguês...com a azáfama burguesa...com a revolução do capitalismo. Curioso que a revolução do cristianismo, há 2000 anos, também se desenvolveu a partir das cidades, mais ou menos em conflito com os pagãos, gente do campo. Este, face às mudanças, é sempre mais conservador, mais pelo adquirido e testado, só muito lentamente aderindo às novas conquistas da cidade, palco de novidades constantes para o bem e para o mal.
Francamente que eu não percebo que o conhecidíssimo poema cesariano De Tarde, 1887 («Naquele pic-nic de burguesas»), seja encarado como campestre (o que é um poema campestre?), quando nele eu mais não vejo que a deslocação da cidade para o campo.
Outro poema de Cesário que seria do ciclo campestre é De Verão, 1887, mas para mim o texto é a apologia de toda a dinâmica capitalista, sendo o carreiro de formigas a grande metáfota (alegoria) para o almejo de tal fim: «Não me incomode, não, com ditos detestáveis!/Não seja simplemente um zombador!/Estas mineiras negras, incansáveis,/São mais economistas, mais notáveis,/E mais trabalhadoras que o senhor!».
O poema campestre de Cesário, por excelência, seria Nós, 1884, ainda que o poeta escreva: «Foi quando em dois verões seguidamente a Febre/E o Cólera também andaram na cidade,/Que esta população com um terror de lebre,/Fugiu da capital como da tempestade». Mas um pouco mais à frente logo desabafa...como se nostálgico do espaço urbano deixado para trás: «Que triste a sucessão dos armazéns fechados!».
Em Nós vemos a denúncia de resquícios de uma sociedade feudal («Das courelas, que criam cereais,/De que os donos - ainda! - pagam foros,/Dividem-no fechados pitosporos,/Abrigos de raízes verticais»); o cântico à exportação («A exportação de frutas era um jogo:/Dependiam da sorte do mercado/O boal, que é de pérolas formado/E o ferral, que é ardente e cor de fogo!»); finalmente, a estocada ao Romantismo...quiçá garrettiano («Ah! O campo não é um passatempo/Com bucolismos, rouxinóis, luar»).
Aqui acaba um pálido esboço de uma figura ímpar de toda a Literatura portuguesa, até hoje desprezado literária e culturalmente só porque esteve do lado certo.
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