Eça de Queiroz, o artesão de Os Maias, não canta ninguém nesta obra literária, senão que lastima nostalgicamente a aristocracia e ri-se da parasitagem da sociedade.
Eu poderia servir-me de uma caricatura para dar a ideia ao curioso visitante deste blog do que é Os Maias: "vós, aristocratas, tristemente, falsificastes a vossa posição de senhores no seio da sociedade. Agora, sentai-vos na plateia e ride das habilidades dos novos actores que fizestes subir ao palco".
Mas é aqui já que surge uma pergunta: quem são os novos actores que sobem ao palco na obra queiroziana Os Maias? Os novos actores são os parasitas do capitalismo, quero dizer, os parasitas de todos aqueles homens que se mexem nos mercados a comprar e a vender, afã considerado desprezível por uma mentalidade aristocrática, justamente a de Eça que escreve o texto em foco.
Ora é exactamente com o servo a passar a homem livre que eu não vejo solidária, desde há duzentos anos, a nossa elite.
A aristocracia em Os Maias está representada muito especialmente pela personagem-toldo Afonso da Maia. Vejamos então algumas passagens da caracterização que o narrador faz ao avô de Carlos Eduardo, o protagonista deste romance.
Comecemos por esta: «...fora [Afonso da Maia], na opinião de seu pai [Caetano da Maia], algum tempo, o mais feroz jacobino de Portugal! E todavia, o furor revolucionário do pobre moço consistira em ler Rosseau, Volney, Helvécio e a Enciclopédia; em atirar foguetes de lágrimas à Constituição; e ir, de chapéu à liberal e alta gravata azul, recitando pelas lojas maçónicas odes abomináveis ao Supremo Arquitecto do Universo» (Livros do Brasil, Lisboa, 2006).
Um parêntesis para esclarecer que é sob o ponto de vista literário que as "odes" são "abomináveis".
Mas, pergunto eu: alguém pode recitar odes ao Supremo Arquitecto do Universo e ficar imune à inexorável confusão sobre o homem e o mundo?
Afonso da Maia, ostracizado pelo pai para Santa Olávia nas margens do Douro, sente a privação e, qual filho pródigo, foi ter com o pai a Lisboa, pedindo-lhe «...a bênção e alguns mil cruzados para ir a Inglaterra...» (ibid., p 16).
Logo umas poucas linhas à frente, com Afonso da Maia já na Inglaterra, o narrador apressa-se a dizer: «durante os dias da Abrilada [revolta de D. Miguel/Abril/1824] estava ele nas corridas de Epsom, no alto de uma sege de posta, com um grande nariz postiço, dando hurras medonhos - bem indiferente aos seus irmãos de Maçonaria...» (ibid., p. 17).
A morte inesperada de Caetano da Maia faz regressar Afonso a Lisboa. É então que conhece e casa com «...D. Maria Eduarda Runa, filha do conde de Runa...» (ibid., p. 17).
Ora Maria era a encarnação da confusão. Muito confuso era Afonso da Maia, cuja visão política o narrador no-la dá: «Já admitia [...] o esforço de uma nobreza para manter o seu privilégio histórico; mas então queria uma nobreza inteligente e digna como a aristocracia tory[...], dando em tudo a direcção moral, formando os costumes e inspirando a literatura, vivendo com fausto e falando com gosto, exemplo de ideias altas e espelho de maneiras patrícias...» (ibid., p. 17). Isto é uma ilusão, produto da inversão da realidade. É evidente que a aristocracia tory de uma Inglaterra sob a reforma protestante desde o séc. XVI e que tinha acabado por sair triunfal de uma das poucas e verdadeiras revoluções do mundo, de uma Inglaterra - dizia - que tinha sido o berço do capitalismo, o sistema político-económico que fez mais pela humanidade nos últimos duzentos anos do que todos os outros juntos desde os primórdios da História, é evidente que - dizia eu - a aristocracia tory nunca poderia ser o espelho da aristocracia portuguesa tal como a água não pode ser o espelho do vinho.
Do casamento de Afondo da Maia com a Runa, digo, do casamento da confusão com a confusão (abyssus abyssum invocat), sai o Pedro da Maia, um monstruzinho qual filho do incesto. Este aqui, cruzamento de tantas mesmices, aloja-se no centro da diegese de Os Maias, uma longa história de chulos da sociedade protagonizada pelo dandy Carlos da Maia, filho de Pedro e neto de Afonso.
2 comentários:
O comentário feito por desatenção ao texto anterior pertence a este. Peço desculpa.
Para conseguirmos evadir-nos da maledicidade das esquerdas em geral e desinverter o real, eu aponto um dos três caminhos: a lógica matemática, a filosofia da religião e a Literatura.
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